Pouquíssimas crianças no mundo sonham em ser Francesco Totti. A globalização tomou conta do esporte e hoje em dia é muito mais suscetível que o garoto cresça sonhando em jogar por grandes clubes da Europa, supostamente onde as coisas acontecem. Não é normal alguém ambicionar passar 20, 25 anos no mesmo lugar, porque o sucesso é temporário, a monotonia pode ser grande e a motivação nem sempre sobrevive a sucessivas derrotas.
A verdade é que o futebol não está só no Olimpico de Roma, no Juventus Stadium, no Camp Nou ou na Allianz Arena. Está em cada campinho simples e surrado, com grama ou terra, pedras ao redor, traves de madeira, onde quer que as crianças gastem seu tempo chutando uma bola. E essa é a magia implícita: todos nós podemos ser nossos próprios ídolos quando a infância anda de mãos dadas com a fantasia e nossos gols podem ser acompanhados por plateias existentes apenas na imaginação.
Depois de Pelé, Maradona, Cruyff, Zico, Zidane, Ronaldinho, Ronaldo, Romário, Maldini, Del Piero e tantos outros ídolos mundiais, cada um tem sua preferência especial quando falamos sobre craques. Só nós mesmos podemos julgar que atletas nos interessam mais, que nos causam mais admiração.
Para mim, no topo desta montanha repleta de lembranças coloridas está Francesco Totti. Um homem que entregou a sua vida desde a infância até a meia-idade a um único clube, talvez o último que vá percorrer toda uma estrada usando sempre a mesma camisa. Porque Totti é romantismo, Totti é Roma, Totti é um ídolo da mais alta patente para qualquer fã de futebol italiano, exceto, evidentemente, os da Lazio.
Deve ter sido cansativo passar 24 anos lutando contra frustrações, num time sempre abaixo do seu talento. Mas algo compensava para que Francesco permanecesse na Roma. Isso ficou provado quando ele recusou uma proposta milionária do Real Madrid, que virou história célebre sobre sua relação íntima com o clube. Importa é ser feliz e ter um lugar para chamar de lar. O resto é perfumaria. Quantas vezes ele não deve ter pensado em ir embora, mas reavaliou e preferiu o seu povo, a sua cidade, suas cores e sua paixão? Estamos falando de um talento formado desde os juvenis até o profissional pela Roma, passando também pela função de gandula.
É e sempre será uma dessas fábulas que ainda sobrevivem aos tempos hostis que vivemos, em que o dinheiro fala mais alto, a ambição também, a pressão por vitórias, nem se fala. Todos estes fatores costumam ser bem mais determinantes do que a vontade de quebrar barreiras de tempo em um time só. Totti foi tudo isso. Foi vencedor, com suas duas taças de Copa da Itália. Foi o último capitão campeão da Serie A, o último dos homens de um clube só, o último camisa 10 campeão do mundo com a Itália. Há muitos aspectos raros nesta trajetória de Totti, todos eles expostos à exaustão na imprensa mundial nos últimos dias. Eu, como blogueiro da Roma e torcedor desde 2000, posso me considerar um cara sortudo.
Não é das coisas mais fáceis, mas esta postura ridícula de Spalletti em boicotar Totti nesta temporada talvez tenha ajudado na transição que atravessaremos sem nosso capitão. Mas jamais agradeceremos ao careca por tornar a ruptura mais lenta e gradual. Francesco merecia um desfecho muito melhor, jogando mais tempo, sendo mais decisivo. Em seu último jogo, foi o romanista mais ativo em campo, o mais determinado, claramente com mais vontade. Se dependesse do resto do time, estaríamos comendo o pão velho e duro da terceira colocação na tabela.
Cabe um pouco mais de relato pessoal nisso tudo. Não deve ser surpresa para nenhum dos leitores o fato de que eu não sou só romanista. Também sou palmeirense, nasci palmeirense, cresci palmeirense, mas nunca trago este tema à tona porque aqui simplesmente não é o local e nem o contexto apropriado para exaltar outra paixão. Aqui só a Roma interessa. Ponto. Ainda assim, há um paralelo que pode ser feito entre estes dois gigantes do futebol: ambos tiveram uma bandeira para chamar de sua. Quatro jogadores sempre estiveram no fundo do meu coração, desde me entendo como gente: Batistuta, Alex, Marcos e Totti. Agora, o último está aposentado e não me resta mais nenhum grande ídolo em atividade. Existem, claro, os candidatos. De Rossi já tem um espaço especial no afeto romanista, assim como Florenzi e Nainggolan. De todos esses, o mais marcante é Totti, sem dúvida.
Em 2000, escolhi ser romanista. Em 2017, várias crises e mudanças pessoais depois, continuo romanista, exclusivamente por causa de Totti. Porque se minha relação com a Roma fosse baseada em vitórias, eu já teria desistido. Totti não é o melhor jogador que já vi. Mas é o maior por tudo que representa. Pela garra, entrega, resiliência e, acima de qualquer coisa, por ter amado esta agremiação até que a sua carreira chegasse ao fim. E porque provavelmente não teremos outros exemplos como ele no futuro. Com Totti, entra em extinção um tipo de futebolista que todo torcedor gostaria de ter do seu lado. O craque que nunca vai embora. É da porta da frente para a aposentadoria, sem escalas, sem namoricos com outras torcidas. Totti é e sempre será só nosso.
A lenda de Francesco vai perdurar para sempre, toda vez que alguém disser o nome Roma, seja a cidade ou a equipe. Totti foi um homem em uma missão, missão essa que foi cumprida à risca e respeitando seus princípios, elevando o clube de patamar. A Roma pode até atrair simpatia pelo que seu capitão representa para o futebol, mas apenas poucos e bons conseguem viver disso, simplesmente pelo fato de que não é satisfatório. A gente não é feliz, sabe disso e não quer fazer diferente. Porque somos assim e não aceitamos encarar a vida de outro jeito. Só vale de verdade se for até o final.
A abnegação de Totti também é a nossa. A abnegação de insistir em um time que sempre vai ser a segunda força do país e jamais chegará ao topo da Europa, porque o futebol não é mais o mesmo de 1984, quando reuníamos condições suficientes para chegar a uma final continental. Depois de duas décadas desgraçadas e com pouquíssima coisa para se comemorar, Totti foi a esperança, o salvador, o herói, o Cristo Redentor que nos abraçou.
Não fomos e nem seremos felizes enquanto romanistas, mas ao menos tínhamos Totti. De hoje em diante, ele deixa definitivamente o seu papel de atleta para viver outra realidade, quem sabe como cartola. E daqui a alguns anos vamos perceber de verdade o quanto ele faz falta. Agora é cedo demais para mensurar o vazio. É tempo apenas para sentir a saudade de um cara que sempre embalou nosso amor pela Roma.
Doeu quando me vi sem Ayrton Senna, mas ainda há o refúgio dos vídeos e do legado que ele deixou. Doeu mais uma vez quando Marcos se aposentou, cansado de ser refém das suas dores. Ainda vai doer quando eu e meus amigos torcedores entendermos que Totti não voltará mais. E que tudo que vimos e vivenciamos nestas décadas foi um esforço necessário para prestar o devido respeito a esta bandeira encarnada em Francesco.
Pouco importam os erros de Totti como pessoa. “Deuses serão sempre perdoados“, como aprendi no brilhante filme de Maradona, dirigido por Emir Kusturica. Se Totti saiu hoje de campo, é porque certamente está pronto para adentrar o panteão dos deuses do esporte, figuras intocáveis e inalcançáveis. A nós, mortais, resta o orgulho de termos sido contemporâneos de um gênio deste tamanho.
Un capitano, c’e solo un capitano. Un capitano, c’e solo un capitaaaa-no!
Fonte: Espn.com