“Eu sempre fui sonhador
É isso que me mantém vivo
Quando pivete
Meu sonho era ser jogador de futebol, vai vendo
Mas o sistema limita a nossa vida de tal forma
Que tive que fazer minha escolha
Sonhar ou sobreviver”
Antes de Brasil x Bolívia, que se enfrentam às 21h45 desta quinta-feira, no vestiário da Arena das Dunas, em Natal, Gabriel Jesus vai escutar os versos que introduzem a música “A vida é desafio”, dos Racionais Mc’s. É sua praxe, superstição, rotina, seu momento de lembrar que venceu o “sistema” para realizar o sonho muito antes do que imaginava. Aos 19 anos, líder e artilheiro do Campeonato Brasileiro, camisa 9 da Seleção.
– Antes do jogo eu tenho que ouvir Racionais. Serve de inspiração. Essa música relata um pouco da minha vida, me considero um vencedor porque é difícil passar por tudo que passei, ver tantos garotos que conheci no futebol, e hoje, se houver um ou dois jogando em algum clube, é muito. Acho que venci o desafio de realizar meu sonho.
“O amanhã é ilusório
Porque ainda não existe
O hoje é real
É a realidade que você pode interferir
As oportunidades de mudança
Tá no presente
Não espere o futuro mudar sua vida
Porque o futuro será a consequência do presente”
O hoje é a eliminatória, é Brasil x Bolívia, é a segunda colocação na tabela, a um ponto do líder, mas a três de sair da zona de classificação. O amanhã é a Copa do Mundo de 2018, a Rússia, o sonho do hexa e de levar um torcedor, que no último Mundial, no 7×1, ainda nem profissional era, para dentro do gramado.
– Eu pintava as ruas desde 2002, quando eu tinha cinco anos. Pegava broxa, pincéis, e pintava as guias. Em 2006, 2010, 2014. Na última Copa eu já estava no Palmeiras, só que na base, então assistia com meus amigos no Jardim Peri (bairro onde foi criado, na zona Norte de São Paulo). Trabalhamos para ter oportunidades e tenho que aproveitar da melhor forma possível porque ainda está longe. A seleção brasileira tem muitos craques. Você pode ser titular hoje e daqui a dois meses nem ser convocado. Chegar é difícil, se manter é mais ainda. Vou trabalhar muito. Se eu pudesse, em 2018 pintaria a rua e jogaria (risos).
“E o sofrimento alimenta mais a sua coragem”
Jesus apanhou. E muito. Até três anos atrás, o atacante da seleção brasileira jogava na várzea, termo que acabou se popularizando com conotação negativa – “que várzea” dizem para tudo que está desorganizado, bagunçado, tumultuado –, mas ensinou muito a Gabriel.
– Quando eu consigo virar na marcação do zagueiro e coloco a bola na frente, igual eu fazia na várzea. Ou quando passo pelos marcadores. E também na parte de não me machucar. Tenho o departamento médico, fisioterapeutas, preparador físico, são importantes, mas desde a várzea eu apanhava muito. Hoje ainda apanho. Dói demais, é normal, mas a várzea me ensinou a apanhar e me deixou bem maduro em várias questões.
Veja seguir outros trechos da entrevista exclusiva que Gabriel Jesus concedeu ao GloboEsporte.com antes de se apresentar à seleção brasileira, em Natal.
ASCENSÃO REPENTINA
– Assusta a mim, à minha família, aos meus amigos. Há dois anos cheguei ao profissional, há três estava na várzea, mudou bastante minha vida. Graças ao trabalho, a Deus, mas dou muito valor à minha mãe e à minha família. Quando eu pensava que não daria mais, eles me ajudavam, têm muita influência nisso. Todo mundo em casa, com 14 ou 15 anos, tinha que trabalhar, mas meu irmão falou: “Deixa ele tentar o sonho dele, vamos correr aqui para ele correr lá”. Eles me deram a oportunidade de tentar tornar meu sonho possível.
FORÇA FÍSICA
– Acho que é bastante de DNA. Meus irmãos sempre foram fortes, minha irmã era mais forte que eles. Isso vem de família. Na várzea eu joguei bastante com a força. Eu era mais velocista, amadureci e hoje consigo dosar as duas coisas.
NÃO SENTIR PESO DE CAMISA OU PRESSÃO DA SITUAÇÃO
– Eu trato as coisas com normalidade. Não sou diferente de ninguém. Encontro torcedores que me abraçam, dão carinho, falam que sou isso e aquilo, mas não, sou uma pessoa normal, gostaria que me vissem assim. Gosto de ser tratado como uma pessoa normal. Quando entro em campo, lembro da minha infância, da vontade que tenho de jogar bola, do sonho que batalhei tanto para realizar. Esqueço tudo que não seja jogar bola ou me dedicar ao trabalho que me dá muitas coisas boas e um futuro imenso para minha família. Tenho que fazer por merecer.
MAIOR NERVOSISMO DA VIDA
– Não vou mentir, foi na estreia pela seleção principal (na vitória por 3 a 0 sobre o Equador, com dois gols seus e um de Neymar). Por uns cinco minutos me deu um apagão e eu pensava: caraca, estou na seleção principal, era meu sonho de criança. Jogando ao lado de craques, e eu dizia: “Nossa, eu via esses caras na TV, hoje estou ao lado deles”. Isso pesou um pouco, mas tentei tornar tudo tranquilo e sair de uma situação que poderia me prejudicar. Consegui focar de novo no jogo. Esse momento me deu uma desequilibrada.
NEYMAR
– Ele é fora de série, um cara admirável dentro e fora de campo. A partir do momento em que não está no trabalho, tem que curtir o que gosta, mas no trabalho você tem que admirá-lo porque, além de ser craque, é um cara do bem, muito humilde, que abraça e trata todo mundo da mesma maneira. É extrovertido demais, brinca toda hora. A personalidade dele é imensa, tenho orgulho de ter a oportunidade de jogar ao lado dele, conhecê-lo e ter sido campeão (olímpico) com ele.
DISPUTADO POR NEYMAR E GUARDIOLA
– Gosto de observar tudo, saber para onde vou, o que vou encontrar, com quem vou trabalhar. Foi uma escolha muito trabalhada (a transferência para o Manchester City, enquanto o Barcelona e outros clubes também o cobiçavam), não foi de uma hora para outra. É complicado, você fica com isso na cabeça, mas procurei não me prejudicar, não me atrapalhar em campo. Consegui separar as coisas e graças a Deus fechei com um grande time, mas estou focado no Palmeiras, quero ganhar títulos e sair com as portas abertas para voltar (Gabriel Jesus vai defender o City a partir de janeiro).
DISCIPLINA
– Melhorei bastante meu temperamento. Eu ficava bravo rápido e fazia coisas que prejudicavam a mim e ao time. Hoje estou tranquilo e com a cabeça melhor. É complicado apanhar o jogo todo, e às vezes o juiz nem dar falta. É normal eu ficar bravo em algum momento, mas que fique bravo e queria responder na bola. A marcação aumentou bastante, eu apanho sem a bola, vou me movimentar para receber a bola e me puxam. No Brasil se apanha bastante, mas é mais com a bola. Na Seleção, fora, você apanha sem a bola, toma soco, tapa.
TITE
– Ele me ensinou bastante, apesar do pouco tempo. Ele sabe trabalhar e passar informação a todos. Fiquei muito feliz pela confiança, mas tenho que mostrar em campo. Ajudei não só com os gols, mas também na parte tática, em saber sofrer no jogo. É normal, uma hora a Seleção vai sofrer. Quando a bola não chega, dá vontade de recuar para pegar, mas há jogadores que fazem essa função. O Tite me ensinou a saber sofrer, a ajudar mais a equipe.
FAVORITISMO CONTRA BOLÍVIA E VENEZUELA
– É difícil ser favorito porque você tem que fazer, tem que ganhar, é obrigatório ganhar. Acredito que não haja hoje uma seleção que só se defenda, ainda mais em eliminatórias de Copa, então acho que serão jogos abertos. Não haverá time que só vai se defender.
MARATONA DE JOGOS
– Eu venho me preparando. No Palmeiras e na Seleção há pessoas adequadas e qualificadas para tratarem dessa questão. Agora é trabalhar o psicológico.
E EM CASA?
– Não sei se é porque tenho 19 anos, mas tenho que melhorar muito a alimentação saudável. Em casa eu não me alimento tão bem. Penso que vou viajar, ficar dias fora, e como mais besteiras: pizza, esfiha. Se deixar eu como esfiha todo dia. Não sei se é por causa da idade que isso não está fazendo diferença, mas terei que trabalhar. Em janeiro, indo embora, isso vai acabar, vou comer mais regrado e certinho porque minha mãe vai pegar muito no meu pé.
MENSAGEM AO TORCEDOR DA SELEÇÃO
– Todos os jogadores terão sempre vontade e raça. Lógico que ninguém é perfeito, todo mundo tem um dia em que não está bem, mas raça e vontade nunca irá faltar. Vestir a camisa da Seleção é um orgulho, uma satisfação imensa, não pode faltar vontade de vencer. O torcedor pode ficar tranquilo. Eu já fui torcedor, todos na Seleção já foram. Se eu errar um passe, vou correr para recuperar a bola, e o torcedor verá que não falta vontade.
MÚSICA
– Gosto muito de pagode e samba, ouço todo dia, mas também ouço funk, rap, black, sertanejo. E antes do jogo tenho que ouvir Racionais.
“Corrida hoje, vitória amanhã
Nunca esqueça disso, irmão”
Fonte: Globo.com