Abrir estradas. Romper as profundas e extensas águas do segundo maior açude cearense. Trocar veículos motorizados pela tração animal. A missão não é nada simplória. O objetivo é ir onde a maioria não consegue. Essa tem sido a vida de muitos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que, para colherem informações a serem destinadas ao Censo 2022, precisam enfrentar uma via crucis pelo Interior cearense.

Para percorrer mais de 3 milhões de domicílios nos 184 municípios cearenses, o IBGE treinou 7.348 recenseadores. Deste universo, pouco mais de 5 mil estão no interior cearense. Um deles é Paulo Alberto Cavalcante que, fora este Censo, já participou de outros quatro. Apesar da longa experiência, a atual edição trouxe um grau de dificuldade extra.

Tendo que cobrir as zonas rurais de Palmácia e Guaramiranga, o recenseador precisou se reinventar e romper barreiras. “Algumas casas estão muito distantes e a gente precisa chegar até lá. O Censo só ficará realmente completo se nós, recenseadores, cobrirmos todos os cantos, por mais difíceis que sejam”, declara.

 

 

Para que o objetivo fosse cumprido, Paulo lançou mão dos transportes convencionais, como motocicleta e carro, e utilizou-se de um cavalo. “Não tem estrada. Não passa moto. Ir a pé era muito distante, cerca de 3 km de caminhada, então resolvi alugar o cavalo e fui”, conta. O animal foi alugado com parte do recurso que os recenseadores recebem, do IBGE, como “ajuda de locomoção”.

“É inusitado, reconheço. Mas, foi preciso”, completa. Inusitado e perigoso. Durante o percurso em mata quase fechada, na zona rural de Palmácia, o experiente recenseador diz até ter caído, embora afirme que, “por crescer na roça, já tem experiência em andar de cavalo”.

“Meu boné enganchou em um galho e acabei me desequilibrando. Caí do cavalo, mas não aconteceu nada, segui minha missão”, detalha Paulo Alberto, ao demonstrar seu compromisso e obstinação para com o objetivo de atingir os locais mais longínquos do Ceará.

Andar — e cair — de cavalo não foi a única dificuldade enfrentada por ele. Em Guaramiranga, nem mesmo a cavalo era possível trafegar por algumas estradas. “O jeito era ir a pé”. Em alguns trechos da zona rural, Paulo conta ter “caminhado 1,5 km mata a dentro”. Como foi quando ele precisou ir ao Sítio Santo Antônio, na localidade de Pernambuquinho, zona rural de Guaramiranga.

Mesmo que sejam poucas casas a gente tem que ir. Esse já é meu quinto Censo. Eu sei exatamente a importância do meu trabalho. Sei que é necessária essa superação. E, mesmo que seja complicado, me orgulho e quero participar de outros Censos.

PAULO ALBERTO CAVALCANTE
Recenseador

 

“CONTRATEI UM BARQUEIRO E FOMOS DE RABETA “

Se Paulo Alberto teve de entrar mata a dentro, outros tiveram que enfrentar as águas do Açude Orós, o segundo maior do Ceará. Recenseador pela primeira vez, Romário Alvez superou o “medo” para atender famílias de 11 ilhas do reservatório.

“Contratei um barqueiro e fomos de rabeta — rabeta é uma espécie de canoa motorizada, com capacidade para duas ou três pessoas”, explica Romário.

 

Apesar de ágil, Romário reconhece que a ‘rabeta’ não oferece muita segurança, por se tratar de uma canoa com pouca estabilidade. “O Orós ganhou muita água neste ano, está cheio, em alguns momentos eu realmente tive medo, a gente olhava para os lados e só via água, não tinha terra firme e, saber que o barco é pequeno, aumenta um pouco o medo”, descreve.

 

 

A partir do momento que optei por ser recenseador eu já sabia dos desafios. Nosso Estado é grande, tem áreas distantes e de difícil acesso. Eu sinto que meu trabalho é extremamente importante. Faria tudo isso novamente. Superei o medo por uma causa maior. E, no fim, deu tudo certo. O barqueiro que escolhi é muito experiente e passou segurança.

ROMÁRIO ALVEZ
Recenseador

 

Com mais de 600 metros de comprimento, o Açude Orós ‘corta’ mais de um município — além de seu homônimo. A zona rural de Quixelô também é banhada pelas águas do reservatório. O recenseador José Ferreira Lima, de 36 anos, enfrenta os mesmos desafios vivenciados por Romário. Para visitar a Ilha Grande — território pertencente à Quixelô — Ferreira também se utilizou de uma rabeta.

 

Legenda: Além da canoa, José Ferreira também fez trajetos de moto e a pé Foto: Arquivo Pessoal

 

“É a única forma de chegar até as famílias que moram la”, pontua o recenseador que está em sua quarta edição do Censo. “Sair de casa antes das 6 horas, subir em uma canoa e cruzar o açude cheio não é uma missão fácil, mas é muito gratificante. A gente sente que nosso trabalho é fundamental”, acrescenta.

Além da canoa, José também fez trajetos de moto e a pé. “Algumas regiões só chegam se for caminhando. A gente para a moto e anda pouco mais de 1 km. É cansativo? É. Mas é nossa grande missão”, conclui Ferreira.

 

 

CANFUNDÓ

Por definição, a palavra ‘cafundó’, significa um lugar ermo e afastado, geralmente de difícil acesso. O recenseador Vladson Moreira, de 20 anos, vivenciou essa descrição na prática. Incumbido da missão de cobrir uma área rural da cidade de Choró, ele precisou “ir além” para que todas as famílias rurais de sua zona fossem contempladas. O “ir além”, inclui trilha, subida a pé de serra e caminhadas de 4 km.

 

Legenda: Vladson Moreira teve de escalar uma serra para colher informações para o Censo 2022 Foto: Arquivo pessoal

 

“Acredito que de todos os recenseadores de Choró, a minha zona foi a mais difícil. As localidades que peguei não têm acesso de moto. Foi preciso fazer tudo a pé”, conta o jovem estreante como recenseador. Para chegar até a localidade de Cafundó — cujo nome já sugere a distância em que está na zona urbana — Vladson precisou subir uma serra. Foram 2km de subida íngreme.

“Eu nasci e me criei no interior. Então já conheço os caminhos, sei das dificuldades e isso tornou a missão menos dura”, conta. Para chegar ao topo da serra, onde está a localidade de Canfudó, Vladson gastou quase mais de uma hora. Missão finalizada, uma nova iniciada.

 

Legenda: As localidades de Cafundó e Escondido ficam na zona rural de Choró e estão separadas por uma serra Foto: Arquivo Pessoal

 

Após entrevistar todas as famílias que residem no Cafundó, Vladson cruzou para o outro lado da serra, em um percurso de mais 2 km, e chegou a localidade “Escondido”. “O nome já diz tudo”, brinca o recenseador. Para finalizar as duas localidades, ele diz que foram precisos dois dias.

“Foi bem puxado e cansativo, mas ao mesmo tempo é gratificante. Primeiro por saber que estou contribuindo para a construção de um importante trabalho, que é o Censo, e segundo pela vista lá de cima. É uma experiência diferente. Uma vista muito linda. Gostei bastante”, conclui o jovem, que afirma pretender participar de outros Censos.

“MUNDO MAIS JUSTO”

Diante de tantas dificuldades pré-anunciadas, o que explica o desejo desses recenseadores de seguirem a árdua caminhada para cumprir a missão do Censo? A psicóloga Aryele Lima avalia que esse comportamento pode ser explicado pelo “sentimento de coletividade”.

A especialista detalha que “muitas pessoas se envolvem em atividades para ajudar os mais necessitados motivados pelo desejo de criarem um mundo mais justo”.

Ainda conforme a psicóloga, o retorno a essas pessoas — além, claro do financeiro — é sentimental. “Esse tipo de atitude proporciona sentimentos de alegria e amor, empatia, compaixão e generosidade”, acrescenta Aryele.

“A motivação interna é algo muito interpessoal. Cada um pode ter motivações diferentes que levem a essa mesma ação. algumas pessoas são motivadas a ajudar o próximo quando refletem sobre a própria morte, outras são motivadas a pensar que com essas ações podem deixar um legado de caridade para a sociedade, etc”, completa.

IMPORTANTE MECANISMO 

O Superintendente do IBGE no Ceará, Francisco Lopes, destaca inicialmente a importância do Censo para a aplicação assertiva das políticas públicas e destinação dos recursos. Ele explica que é a partir deste mecanismo que o governo Federal terá subsídios para pautar importantes questões como educação, saúde e moradia.

“Este mecanismo nos dará informações que serão utilizadas pelos próximos dez anos. Por isso é tão importante que a gente consiga abranger o maior número de famílias, mesmo àquelas que moram em localidades mais afastadas. Estamos chegando ao fim do Censo agora em meados de dezembro, e teremos um retrato fiel da população”, diz.

Todos os recenseadores, ainda segundo Lopes, recebem treinamento, cuja abordagem vai desde a aplicação correta dos testes a conscientização do quão importante é o trabalho deles.

“Eles estão cientes de que há, sim, desafios. Tem áreas do Estado onde só é possível chegar de barco, a pé ou com algum animal, como cavalo. E, para incentivar e reconhecer o empenho deles, o IBGE paga uma bonificação por cumprimento de metas e garante recursos para deslocamento”, detalha.

Neste treinamento, eles também são orientados quanto à resistência que por ventura podem vir a encontrar. “Muitos desconhecem o trabalho do IBGE e acabam recebendo de forma ríspida essas pessoas. Outros temem a segurança, enfim, são várias questões que esses recenseadores enfrentam, mas todos são treinados e estão preparados para desempenhar o papel da melhor forma”, finaliza Lopes.

 

 

 

Diário do Nordeste

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