Se fosse num mergulho, com cilindro e tudo, teríamos descido 20 ou 25 metros de profundidade em um dos trechos do lado direito da parede do açude. Mas os anos de pouca chuva no Semiárido, batendo à porta no sexto ano consecutivo, nos fez descer nas fundaras do Castanhão sem precisar de barco a motor nem equipamentos para respirar debaixo d´água.
Onde havia um ‘mar’, nascido principalmente das surpreendentes chuvas de 2004 e 2009, há extensos vales que se pode percorrer a pé. Tem de ter fôlego pra subir e descer. É a margem se distanciando do que eram 6,7 bilhões de metros cúbicos (m³) e, hoje, se desmilingue na floresta afogada emergida nos dois e poucos por cento do que resta de espelho d´água.
Uma imagem mal-assombrada e, ao mesmo tempo, uma fotografia imperdível do Sertão evaporando. No fim do viço e quase cego nos olhos encandeados com o sol vertical acima do chapéu. O reservatório gigantesco conta os dias. Ou inverno abundante ou as águas de Francisco. O açude Castanhão é a vida de José Wanderley dos Santos, 44, conhecido na beira d´água por Veudo. Um matuto, sem o preconceito da palavra, estoico na convivência com ele mesmo e com o açude – senhor de tudo que o rapaz tem hoje. “Mas está por um trisco”, rumina enquanto o drone rouba atenção. Veudo, como pede para ser escrito, tem resiliência invejável e ri. Até chegar ao espelho d´água e se fixar com uma fazenda de tilápia, na imensidão do Castanhão, viveu quase um romance de Ariano. Começou trocando uma moto por duas novilhas e foi se virando, fazendo dinheiro no Semiárido. Quase nada é ficção.
Lá em 2005, quando desceu com a família e a mãe, no assentamento do Desterro, na Jaguaribara planejada, corrido da barragem que ia inundar tudo, havia apenas promessas dos governos. “A gente chegou a passar fome”, reacende Veudo. Nada foi fácil no enredo, também, Graciliano.
Porém imaginar que aquele “mar” iria minguar? Nunca. Em 44 anos, Veudo atravessou secas penitentes. “Mas como agora?”, se interroga. É que a vivência do encarrilhado de seis anos apaga qualquer memória.
As recentes estão frescas. E são de uma semana para outra. Todos dias, quando chega para cuidar dos peixes que restam em 65 gaiolões (já foram 2.500 cativeiros), a água tem se afastado mais e mais do galpão de apoio em terra firme – onde o beiço do açude chegava. Mais ou menos 5 km de distância de lá, indo de carro e, depois, em duas embarcações até o lugar dos viveiros, hoje. “Do começo da seca pra cá, já perdi as contas de quantas vezes tive de mudar os tanques para não ter mais prejuízos”, diz sem tom de derrota. É assim o movimento: o açude vai evaporando e quem ainda insiste em lidar com as tilápias tem de achar águas da fundura de pelo menos 10 metros. Veudo e os dois funcionários que restam, já foram quatro, seguem puxando as cordas dos tanques em direção ao miolo do reservatório gigante. Mesmo no volume da “quase morte”, nos 2,42%, o Castanhão inundaria seis vezes o Gavião – açude que também dar de beber à Região Metropolitana de Fortaleza.
É o que tem de ser feito, decreta Veudo. Ficar se movimentando no Castanhão agonizante. Só duma lapada, numa semana, ele gastou R$ 750 comprando combustível para alimentar os barcos e ser nômade dentro das águas do açude. “Quando estava bom, cheguei a ganhar em uma despesca R$ 150 mil aqui dentro”, recorda.
Veudo ainda tem 12 mil peixes para despescar quando fevereiro ou março chegar. Ele, talvez, seja o maior produtor ainda ali. Além de alguns poucos com três mil tilápias. Quem tem dinheiro migrou para Sobradinho, Bahia. Provavelmente, será a derradeira safra de cativeiro no Castanhão, se não vier um “dilúvio de inverno” neste ano. “Quem não tem muito dinheiro, ficou pelejando como eu. Se chover, volta todo mundo. A quentura das águas daqui é melhor pra tilápia”, ensina.
DEMITRI TÚLIO