Viver com banheiro compartilhado com pessoas de fora da própria casa, com fossa rudimentar, vala a céu aberto ou até mesmo sem banheiro.
A realidade insalubre é compartilhada por mais de 1 milhão de crianças e adolescentes do Ceará.
O levantamento consta na pesquisa “Pobreza multidimensional na infância e adolescência”, realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) de 2016 a 2022.
O Unicef fez um raio-x do acesso de cearenses de 0 a 17 anos a direitos estruturais, como educação, informação, moradia, água, saneamento e renda, no ano de 2022.
Entre os pequenos cearenses, 8 a cada 10 têm alguma privação de direito, seja intermediária (quando há acesso, mas sem qualidade) ou extrema (quando não há acesso). Renda, saneamento e moradia são as garantias mais afetadas, segundo o estudo.
Mais de 1 milhão de meninos e meninas de até 17 anos têm acesso precário a saneamento, enquanto 901 mil vivem com renda familiar abaixo da linha de pobreza. Más condições de moradia afetam, pelo menos, 139 mil pessoas nessa faixa etária.
Santiago Varella, especialista em Políticas Sociais do Unicef no Brasil, destaca que é preciso “ver a pobreza para além da renda”, para avaliar os efeitos das ausências principalmente sobre uma parcela tão sensível da população.
“Mais de 60% das crianças e adolescentes vivem em pobreza multidimensional no Brasil. Existe uma tendência de queda, mas muito lenta. Estamos falando de crianças com renda insuficiente, analfabetas, com atraso escolar ou fora da escola; sem banheiro, sem água, e outros problemas”, lamenta.
EFEITO DOMINÓ DE DIREITOS
Santiago destaca que a falta de saneamento básico “é uma violação extremamente relevante de ter atenção do poder público, porque dela derivam outras, como a saúde – que tem reflexos em todo o resto, da qualidade de vida ao desempenho educacional”.
Rui Aguiar, chefe do escritório do Unicef no Ceará, analisa que os efeitos da ausência de acesso regular à água potável, à rede de esgoto e a banheiro exclusivo do domicílio impactam da privacidade à saúde dos jovens.
A casa é um lugar muito especial, é onde a criança percebe como será tratada como cidadã pelo resto da vida. Ter uma casa com serviços básicos de acesso à internet, banheiro, local adequado pra dormir, uma rua com segurança, lugares de esporte e lazer na comunidade é estrutural. Os indicadores nunca estão sozinhos.
RUI AGUIARChefe do escritório do Unicef no Ceará
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O especialista cita que a privação do direito ao saneamento é flagrante na periferia de Fortaleza e nas áreas mais empobrecidas de municípios do interior do Ceará, “nas condições em que vivem as crianças em habitações precárias”.
Nesse contexto, Rui frisa que é urgente “retomar os investimentos em moradia”. Ele observa que “o Ceará avançou na educação, reduziu a mortalidade infantil, mas precisa priorizar a atenção ao lugar onde a criança mora”.
ESTADO DA EDUCAÇÃO
Referência nacional em educação, o avanço do Ceará na área se expressa nos números – “positivos” em comparação aos demais estados brasileiros, mas ainda preocupantes em termos absolutos.
De acordo com o Unicef, 138,9 mil crianças e adolescentes cearenses têm privação intermediária do direito à educação, ou seja, frequentam a escola, mas com atraso escolar ou sem saber ler nem escrever.
53,2 MILamargam a privação extrema de acesso à educação: são pessoas de 4 a 17 anos que não frequentam um estabelecimento educacional ou crianças maiores de 7 anos analfabetas.
“A questão da educação mostra que o esforço feito ao longo do tempo de maneira sustentável e duradoura tem resultados. As políticas educacionais protegeram as crianças, o Ceará não foi tão afetado em termos de alfabetização como outros foram na pandemia”, pontua Rui.
O Unicef destaca, no relatório do estudo, que “quando uma criança ou adolescente não tem acesso a um ou mais direitos, significa que vive na pobreza em suas múltiplas dimensões” – cenário que se agravou após a pandemia de Covid-19.
O percentual de meninas e meninos na pobreza multidimensional caiu de 62,9%, em 2019, para 60,3%, em 2022, conforme a pesquisa – mas ainda corresponde a 31,9 milhões de crianças e adolescentes brasileiras.
Desigualdades regionais e de cor e raça atravessam os indicadores, exigindo, como reforça Santiago, “compromisso de estados e municípios com políticas efetivas” e que se traduzam no dia a dia das famílias.
Diário do Nordeste