A abordagem é na fila do caixa do supermercado São Luiz, localizado no cruzamento da avenida Rui Barbosa com Santos Dumont. Uma mulher jovem, com um saco de leite Ninho na mão e um saco de Neston, pede para que o cliente faça “a caridade” de comprar a mercadoria. Na justificativa sucinta da pedinte, a suposta necessidade de filhos com fome em casa. A cena se repete várias vezes durante o horário comercial de mercantis no miolo da Aldeota, bairro privilegiado de Fortaleza, e filiais de grande porte espalhadas pela Capital.

Com a pandemia da Covid-19, insegurança alimentar e a falta de emprego impulsionaram o contingente de pedintes nos semáforos, supermercados e shoppings de Fortaleza. (Foto: FABIO LIMA)
Foto: FABIO LIMACom a pandemia da Covid-19, insegurança alimentar e a falta de emprego impulsionaram o contingente de pedintes nos semáforos, supermercados e shoppings de Fortaleza.

Com a pandemia da Covid-19 e o aprofundamento da situação da miséria em Fortaleza, alguns grupos de pedintes passaram da calçada para o interior dos supermercados e dos shoppings. Uma situação, até certo ponto, inusitada, e que levou donos dos empreendimentos a recorrerem ao Poder Público para saber como lidar com a “nova faceta” da velha mendicância que bate à porta, desta vez, com maior veemência.

Barrar alguém na porta de um supermercado ou de um shopping pode dar em aporofobia (ojeriza a pobre) ou qualquer outra discriminação social motivada pela aparência. Na era do cancelamento com avalanche de postagens em redes sociais, qualquer gesto repressivo das lojas pode destruir a imagem do negócio e gerar prejuízo além do previsto.

Preocupados com eventuais repercussões, essas empresas se envolveram mais ativamente na busca de soluções para a situação. Um grupo de empresários procurou o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE). De acordo com o juiz Manuel Clístenes, da 5ª Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, “há quem realmente esteja em situação de vulnerabilidade, mas também há gente se aproveitando do contexto de necessidade extrema para alimentar uma suposta rede de exploração da mendicância em Fortaleza”.

Inicialmente, revela o magistrado designado para coordenar um grupo de trabalho sobre o assunto, executivos do Iguatemi pediram “orientação e providências”. De dois anos para cá, descreve Manuel Clístenes, o shopping passou a registrar “problemas com furtos, corre-corre nos corredores, crianças e adolescentes vendendo bombons ou pedindo cinco reais”.

Enquanto nos shoppings a presença de pedintes é marcadamente de crianças e adolescentes, em supermercados de grande porte a maioria das pessoas que apela para a caridade alheia é composta por mulheres jovens e meninas.

“Em alguns pontos, nos supermercados principalmente, a reclamação é que um grupo de mulheres se repete na abordagem ostensiva para a compra específica de fraldas e leite em pó”, observa Manuel Clístenes.

De acordo com o juiz, depois de uma série de reuniões com órgãos como a Fundação da Criança (Funci), Conselho Tutelar, Ministério Público do Ceará, Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado e outras instituições públicas e privadas, foi possível tirar algumas conclusões sobre a dinâmica da mendicância.

Segundo Manuel Clístenes, “tem gente alugando crianças para pedir esmolas em Fortaleza. Muitas dessas pessoas estão identificadas, são adultos que não têm nenhum vínculo familiar com os pequenos e os exploram na hora de pedir”, afirma.

Mais preocupante ainda, de acordo com o juiz, foi ter recebido a informação de que “existe uma cota diária para arrecadar de acordo com o estabelecimento onde estão apurando. No caso de shoppings como Iguatemi e RioMar Fortaleza, a “meta diária seria de R$ 100”.

Mais ainda, as supostas “famílias que estão nos shoppings e supermercados não estão pedindo uma cesta básica. Não é aquele pedido para matar a fome, elas passam o dia inteiro pedindo produtos de maior valor agregado. No caso, principalmente, leite em pó (em saco) e fraldas”.

Para o magistrado, e de acordo com dados levados por órgãos da Prefeitura de Fortaleza, é possível que exista “um sistema profissional de exploração da mendicância. Eles recolhem, camuflam em um local onde estão pedindo e voltam a pedir a mesma coisa. Como estão pedindo muito leite em pó e fraldas, provavelmente tem alguém por trás desse comércio”, supõe o juiz Manuel Clístenes.

Mendicância em Fortaleza. Com a pandemia da Covid-19, Insegurança alimentar e a falta de emprego impulsionaram o contingente de pedintes nos semáforos, supermercados e shoppings de Fortaleza. Foto: Samuel Setúbal/Especial para o O POVO)

Mais de 400 famílias estão nas ruas de Fortaleza mendigando

Levantamento da Prefeitura de Fortaleza aponta que a capital cearense tem, pelo menos, 1.107 crianças e adolescentes pedindo esmolas nas ruas e centros comerciais na zona privilegiada da Cidade. Desse contingente, 51,4% tem idade entre zero e 6 anos. O cenário é de 2021, de acordo com Iraguassu Filho (foto) – presidente da Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci).

O POVO – Quantas famílias ou grupos, em situação de mendicância, foram abordadas pela Funci?

Iraguassu Filho – Em 2021 foram 447 famílias, sendo 1.107 crianças ou adolescentes.

OP – O programa Ponte de Encontro foi motivado pelo aumento da mendicância?

Iraguassu – Existe desde 1993, mas com o aumento da demanda temos intensificado nossas ações em toda a cidade. (O Ponte de Encontro trabalha na abordagem e encaminhamento de pessoas em situação de rua).

OP – Quantas crianças e adolescentes estão na escola?

Iraguassu – 90% estão matriculadas na rede pública de ensino.

OP – E quantos adultos recebem alguma bolsa de assistência?

Iraguassu – 90% das famílias recebem o Auxílio Brasil.

OP – Quantos adultos não têm grau de parentesco com as crianças ou adolescentes nos grupos de pedintes abordados?

Iraguassu – Não temos esse dado exato, mas é a minoria dos casos.

OP – Há algum levantamento que aponte mais de uma geração de pedinte na rua?

Iraguassu – Não há nenhum levantamento nesse sentido, apenas a constatação de alguns casos acompanhados pelo programa. A maior parte (das pessoas abordadas) começou nos últimos anos por conta da crise econômica.

OP – Quantas pessoas “moram” na rua?

Iraguassu – Das 1.107 crianças atendidas, 153 vivem nas ruas. 954 crianças têm moradia, mas estão nas ruas praticando mendicância.

Mendicância em Fortaleza. Com a pandemia da Covid-19, Insegurança alimentar e a falta de emprego impulsionaram o contingente de pedintes nos semáforos, supermercados e shoppings de Fortaleza. Foto: Samuel Setúbal/Especial para o O POVO)
Mendicância em Fortaleza. Com a pandemia da Covid-19, Insegurança alimentar e a falta de emprego impulsionaram o contingente de pedintes nos semáforos, supermercados e shoppings de Fortaleza. Foto: Samuel Setúbal/Especial para o O POVO)

Ministério Público abriu procedimento

A existência da mendicância em qualquer situação, seja por extrema necessidade, por exploração criminosa de crianças e adolescentes ou golpes, têm de ser enfrentada sem medo e cada ente público executando, à risca e com vontade política, o que manda a lei. A observação é do promotor Luciano Tonet, da 77ª Promotoria de Justiça de Fortaleza – que atua na Tutela Coletiva Protetiva da Infância e Juventude.

A noviça situação de pessoas pedindo esmolas no interior de supermercados, shoppings centers – com ocorrência de exploração do trabalho infantil – gerou, no mês passado, a instalação de um procedimento administrativo.

De acordo com Luciano Tonet, o procedimento irá acompanhar “a criação de fluxo de trabalho da rede protetiva nos casos de crianças e adolescentes em situação de rua, vulnerabilidade e mendicância”.

A providência, ressalta o promotor de Justiça, é parte do acompanhamento que o Ministério Público vem fazendo desde 2016 em relação à mendicância em Fortaleza e à vulnerabilidade, principalmente, de crianças, adolescentes e das famílias em situação de rua.

A mendicância sempre foi preocupante, se agravou com a pandemia da Covid-19 e a derrocada da política econômica do Brasil durante o governo Bolsonaro. De acordo com o Luciano Tonet o que não pode ocorrer é a “quebra da rede de proteção da infância” com a descontinuação ou falta de prioridade para enfrentar o problema.

“Fizemos várias ações, por exemplo, cobrando da Prefeitura de Fortaleza que cumpra a execução orçamentária voltada para a proteção da infância e da adolescência no Município. Tem dinheiro, mas só foi aplicado 0,33% do que foi previsto para essa área. Não pode ser assim, isso também agrava a mendicância”, pontua o promotor de Justiça.

Luciano Tonet alerta que há outros problemas. Ele cita o perrengue eterno enfrentado pelos Conselhos Tutelares, que precisam de equipamentos e meios eficientes para dar vazão à grande demanda com a qual lidam diariamente. Computadores novos, por exemplo, em vez de usados e com vida útil comprometida.

“Além disso, os conselheiros têm de estar cientes do que é competência deles. Eles podem aplicar medidas de proteção e, muitas vezes, acham que isso é um trabalho da Prefeitura”, explica o fiscal da lei.

Segundo o promotor, a rede de proteção à infância e à adolescência precisa funcionar de forma sistêmica. Se há quebra em algum ponto da estrutura montada pelo Poder Público, haverá interrupção de soluções para a vida de uma criança explorada no ciclo da mendicância.

Em 1993, o Município criou o programa “Ponte de Encontro” para identificar e encaminhar saídas para a situação de crianças e adolescentes que estão na rua. No entanto, afirma Luciano Tonet, não adianta a Prefeitura encaminhar quem foi abordado para o “Cres (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) ou o Cras (Centros de Referência da Assistência Social) se as instituições não conseguem fazer o acolhimento necessário”.

A falta de pessoal também é apontada como obstáculo. Antes do Ponte de Encontro, havia o programa “Sentinela” e mais de 80 profissionais atuavam nas ruas de Fortaleza. De acordo com o promotor, com o passar do tempo, o número chegou a ser reduzido para 12 servidores.

Atualmente, o Ponto de Encontro funciona com 56 pessoas e muitas delas com vínculos precários porque são terceirizados. Além disso, os horários para as abordagens ocorriam apenas em períodos comerciais. Ficando de fora o espaço de exploração durante a noite, nos feriados e finais de semana. A partir de uma recomendação do Ministério Público as lacunas foram revistas e preenchidas.

“Mas não adianta ter mil ou 56 pessoas trabalhando se a engrenagem do sistema de proteção tem quebra”, pontua o promotor Luciano Tonet. (Demitri Túlio)

Sozinha, a permanência da esmola não oferece soluções

A esmola pode ser entendida como uma ação de redução de danos, visto que a fome é real, produzida por um sistema desigual que amplia a miséria. As pessoas, por uma atitude natural de sobrevivência, se submetem àqueles que possuem e que podem compartilhar. Pode também ser um colírio à cegueira moral, que afasta o indivíduo do caos social, como se não fosse de sua responsabilidade a vida do outro. Toda vida é “intervida”, é vida interconectada, ecologia pura.

No entanto, a permanência da esmola, numa situação de crise que pode se prolongar, também pode “cronificar” os processos: o processo de pedir e o processo de doar, criando o assistencialismo, sem assistência real. Ou seja, sem criar processos mínimos de superação. E nesse sentido, sem invalidar a participação social, é que auxiliar uma organização pode ser uma saída eficaz, visto que as organizações sérias, nesse momento, além da resposta imediata, estão pensando e construindo com as pessoas, as saídas para a autonomia mínima.

Há 27 anos, a Casa da Sopa trabalha com a situação de fome e de extrema vulnerabilidade das pessoas em situação de rua, e tem ampliado suas ações para pessoas na comunidade do Centro da cidade de Fortaleza que, devido à fome, ficam num limiar entre casa e rua.

Trabalhamos com os recursos da sociedade civil, com solidariedade de doadores, que têm se tornado mais escassos nesses tempos. Acompanhamos mais de 400 pessoas em nossos processos. Realizamos assistência imediata como alimentação, oferta de banho e roupa limpa, material de higiene pessoal, etc.

Trabalhamos também com a reflexão sobre cidadania e direitos humanos. Empoderamento de mulheres em situação de vulnerabilidade em rodas de conversa e encaminhamento para as políticas de proteção social.

Além do atendimento básico em saúde, terapias integrativas, com encaminhamento e acompanhamento de processos em unidades de saúde. Também passamos informações e orientações sobre processos judiciários e previdenciários. E geração de renda com fomento e organização de pequenos negócios. (Leonardo Rodrigues / Educador Social, membro fundador do Grupo Espírita Casa da Sopa – Representante da Rede Americana de Intervenção em Situação de Sofrimento Social)

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