“Fiquei totalmente transtornada, desesperada, porque eu não contava nunca que aquilo ali acontecesse. A única coisa que eu tinha certeza na minha vida era da minha cor, da minha identidade”, disse a jovem em entrevista ao g1.
A situação começou ainda no ano passado, época em que ela foi aprovada para uma vaga no curso por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), na modalidade de cotas para pretos e pardos com renda familiar per capita inferior a 1,5 salário-mínimo.
Na ocasião, Samille até chegou a enviar material para comprovar a autodeclaração, gravando um vídeo curto, mostrando o rosto e o perfil. O procedimento é previsto pelo edital da UFF para impedir fraudes nas cotas.
A tão esperada aprovação, no entanto, foi barrada. Segundo o comitê de heteroidentificação da universidade, responsável por analisar os pedidos de entradas por meio de cotas, Samille estaria inapta para integrar o sistema, o que levou a jovem a entrar com um recurso.
O recurso também não surtiu o efeito esperado. Mesmo com Samille provando que já havia se formado em biomedicina pelo Prouni, utilizando a mesma categoria da cota em questão, a banca apontou que “não foram encontradas as características fenotípicas” de uma pessoa parda.
Liminar na Justiça
Samille, então, entrou na Justiça para conseguir liminar e obteve êxito, após um ano, na busca por se matricular no curso de Medicina.
“Eu morava em Belo Horizonte. Soube na sexta à noite que poderia ir para a aula de segunda-feira. Pedi demissão no meu trabalho no sábado, peguei um ônibus às 22h e fui para o Rio de Janeiro. Vim na correria, três dias depois de perder meu pai”, contou ao portal.
No entanto, após um semestre, um desembargador cassou a liminar, determinando que Samille não teria direito à vaga preenchida. Na época, ela perdeu todas as notas, o acesso à universidade e todos os dados enviados para a matrícula. “Meu mundo caiu. Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça”, argumenta.
No edital do Sisu da UFF, a avaliação da banca de heteroidentificação é realizada à distância. O texto aponta que o vídeo deve ser feito em fundo branco, focando no rosto do candidato, enquanto ele cita a autodeclaração. Além disso, o candidato ainda deve finalizar o vídeo com imagens do perfil do rosto, o que deve auxiliar na análise.
A portaria normativa nº 4, atualizada em 2023 pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, aponta que em concursos públicos “a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela pessoa”.
Os advogados de Samille chegaram a orientá-la a realizar uma avaliação com um antropólogo. “Era uma tentativa de provar que tenho as características de uma pessoa parda. Ele analisou meus traços, o formato dos meus lábios, o meu nariz e o meu crânio, para provar que tem origem negroide. O laudo mostrou que tenho todas as características, mas isso não bastou”, disse Samille.
O processo segue na Justiça e a jovem voltou a estudar para o Enem, se preparando para o cenário em que a situação não se resolva. “A medicina é um amor que eu tenho em ajudar, em cuidar das pessoas. É mais do que um sonho. É um propósito“, finalizou ela.