Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) deve impactar na ocupação de cargos públicos eletivos e também no pleito municipal que acontecerá em outubro deste ano. Proferida em junho, a decisão ocorreu em razão do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1089), ingressada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que recorreu à Corte para impedir que parentes até segundo grau ocupem, simultaneamente, os cargos de chefia dos Poderes Legislativo e Executivo da mesma unidade federativa.
O STF, entretanto, entendeu que políticos com alguma relação familiar entre si — sejam eles cônjuges, companheiros ou parentes de até segundo grau — podem ocupar, ao mesmo tempo, as cadeiras de chefia dos Poderes. A relatora do caso, a ministra Cármen Lúcia, foi quem defendeu esse entendimento, logo acompanhado pela maioria dos membros do colegiado.
Para ela, a Carta Magna não estabelece a hipótese de inelegibilidade mencionada pela sigla partidária e o impedimento restringiria direitos políticos fundamentais, limitaria o exercício do mandato parlamentar e também a independência o Legislativo. Votaram com a responsável pela relatoria os ministros Cristiano Zanin, Nunes Marques, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
Ao ajuizar o tema, o PSB indicou que tem se tornado comum a ocupação de atribuições de chefia de Casas Legislativas e de prefeituras e governos estaduais por pais e filhos simultaneamente. A legenda argumentou que o texto constitucional prevê, pela chamada “inelegibilidade por parentesco”, o combate à oligarquização do poder, vetando a tendência alegada, que comprometeria a moralidade e a impessoalidade da administração pública.
Assim, o partido solicitou a concessão de medida cautelar para impedisse a prática. Isso ocorreria a partir do mandato das mesas diretoras do biênio 2025–2026. Os mandatos iniciados nos municípios e nos estados nos biênios anteriores iriam ter continuidade. O PSB solicitou que o STF definisse uma tese que fixasse essa determinação.
O ministro Flávio Dino abriu divergência na Corte, quando votou pela procedência do pedido do partido político. Segundo ele, a Constituição Federal seria clara em impedir a formação de oligarquias familiares no Brasil. Os ministros André Mendonça, Edson Fachin e Dias Toffoli acompanharam o voto de Dino.
O QUE DIZEM ESPECIALISTAS
Consultado pelo Diário do Nordeste, Isaac Newton Carneiro, especialista em Direito Municipal e Direito Eleitoral e professor da Universidade Católica do Salvador (UCSAL), explicou que o julgamento do STF tem um efeito jurisdicional, ou seja, pode ter sua decisão aplicada em tribunais inferiores que julguem temas parecidos com o apreciado agora pelo Pleno.
Exemplificando com um caso hipotético em que uma mulher é eleita prefeita de um município e seu marido, eleito no mesmo pleito que ela como vereador, se torna, no decorrer do mandato, presidente da Câmara Municipal daquela mesma cidade, ele observou não haver uma questão no âmbito do princípio da administração no que foi julgado pelo STF, já que ambos os cargos são eletivos.
“Não foi um que elegeu o outro. Apesar da gente saber que em alguns casos os parlamentos municipais e até estaduais sofrem uma influência muito grande do Executivo. A gente sabe disso. Mas, teoricamente, essa eleição (para a presidência) é independente”, constatou o estudioso à reportagem.
O que o PSB propôs foi uma tese dizendo: ‘olha, neste caso você está fraudando a Constituição’, não por uma regra da administração, mas por um princípio eleitoral. Ou seja, você estaria comprometendo a lógica da independência dos Poderes, uma vez que essa vinculação familiar poderia trair esse princípio.
O docente considerou que a discussão realizada no contexto da ADPF 1089 é “interessante” e que o entendimento constitucional ficou assentado pelo STF. “O Supremo disse: ‘olha, se a população escolheu fulano A para ser chefe de um poder e os parlamentares escolheram fulano B para ser chefe de outro poder, isso teoricamente, do ponto de vista da nossa Constituição, não teria impedimento’. Essa foi a leitura que a Corte fez”, colocou o entrevistado.
Ele, entretanto, fez uma observação quanto ao que estabelece a Carta Cidadã quanto às regras eleitorais: a de que companheiros e companheiras, bem como parentes de até terceiro grau, de prefeitos, governadores e até mesmo do presidente da República não podem concorrer a cargos eletivos na mesma circunscrição do chefe do Executivo. Isso se mantém.
“A regra é prévia. Então se o sujeito já é governador, ele não pode, por exemplo, indicar a mulher dele para sucedê-lo. E ela também não pode ser candidata na circunscrição onde ele tenha voto”, alertou o professor.
O advogado Pedro Cravo, especialista em Direito Público Municipal, relembrou o entendimento da ministra Cármen Lúcia. “O entendimento da relatora foi no sentido de que se eu tenho uma eleição própria para a presidência da Câmara e uma eleição própria para prefeito, esses pleitos não se anulam pela independência dos Poderes”, disse.
E também o do ministro Dino: “Ele tentou demonstrar que há ainda interferência no poder. E há maior execução do poder numa municipalidade quando se tem o conjunto do Poder Executivo e do Poder Legislativo dentro de uma mesma família”.
Mas fez ponderações quanto ao que ficou decidido. “Concordo com o ministro Flávio Dino porque o STF, ainda na lavra da ministra Cármen Lúcia, que não fica configurado por si só, não há prova robusta que esse poderio concentrado na mão de pessoas do mesmo grupo familiar não seria uma limitação do exercício de mandato ou teria alguma interferência por conta do parentesco”, iniciou.
E continuou: “No entanto, acontece que o STF, ao adotar essa postura, traz para si uma questão muito obscura para o jogo político, porque se sabe e se carece de provas para, inclusive, manejar as ações de investigações judiciais eleitorais que tenham por mérito a configuração de um abuso de poder político”.
Para o advogado, possíveis interferências do presidente da República no Legislativo, por exemplo, seria algo difícil de acontecer, por conta da visibilidade e das outras instâncias que fiscalizam a atuação destas chefias.
Mas quando você traz essa discussão para o nível municipal, propõe essa perspectiva de forçar esse mandato de um parente ocupar o cargo de chefia da Câmara de Vereadores e ter um parente como prefeito de um Município, isso retoma a questão vedada pela nossa Constituição Federal de não ter essa dinastia no poder, essas oligarquias familiares, como trouxe o ministro Flávio Dino.
CASOS NO CEARÁ
Apesar do entendimento do Supremo Tribunal Federal ser recente, o Ceará acumula casos em que cônjuges e outros familiares estiveram, ao mesmo tempo, em chefias distintas do Poder Público municipal.
Em Iguatu, na região Centro Sul, em 2022, a presidência da Câmara Municipal esteve sob o comando da vereadora Eliane Braz (PSD), esposa do prefeito Ednaldo Lavor (PSD). Naquele ano, pela prerrogativa de presidir o Legislativo, Eliane chegou a assumir a cadeira de prefeita da cidade interinamente, após o seu companheiro e o vice Franklin Bezerra (PSDB) terem seus mandatos cassados pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE). Em janeiro deste ano, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concedeu uma liminar em favor do seu companheiro, ele retornou para a gestão.
Já em Caridade, no Sertão de Canindé, o afastamento da prefeita Simone Tavares (PSB), em maio deste ano, lançou luz sobre a relação familiar dela com o presidente da Câmara Municipal, José Erivaldo (PDT). A Casa Legislativa, presidida pelo pedetista e familiar da gestora, chegou a extinguir o mandato do vice-prefeito Renato Timbó (PT) na época em que Tavares foi afastada da gestão, sob o argumento de que ele era advogado e, portanto, conforme prevê o Estatuto da Advocacia, estaria impedido de substituir a aliada. A questão foi judicializada para que o petista assumisse o posto.
Nesta segunda-feira (1º), Simone Tavares divulgou um comunicado em suas redes sociais em que informou seu retorno para a chefia da Prefeitura de Caridade. Na postagem, ela mencionou o habeas corpus concedido pelo ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que revogou as cautelares de afastamento ao cargo público e acesso às repartições públicas.