Responsável por despertar uma verdadeira jornada sensorial que alivia angústias do corpo e da mente, uma planta de folhas com lâminas serrilhadas tem sido protagonista na vida de inúmeros cearenses nos últimos anos. Com fortes poderes medicinais, ela vem se mostrando eficaz para reduzir dores crônicas, além de fascinar profissionais e estudiosos da medicina pela sua versatilidade em favor da saúde individual e coletiva. Estamos falando da maconha (ou Cannabis sativa), cuja regulamentação para fins medicinais está sendo discutida no Ceará em 2023. Aguarda-se um cenário de transformações no tratamento com a maconha.

Ainda envolta em um longo debate que acende discursos de natureza moral e política em detrimento daquilo que diz a ciência, a maconha é apontada atualmente como uma matéria-prima que pode revolucionar o tratamento de incontáveis doenças. Autismo, epilepsia, fibromialgia, doença de Parkinson, ansiedade e Alzheimer são algumas das condições clínicas e enfermidades que podem ter seus sintomas aliviados a partir do uso medicinal da planta.

Buscando seguir os passos de São Paulo, Paraíba, Pernambuco e outros estados, o Ceará começou a colocar este assunto em pauta em sua Assembleia Legislativa (Alece) com a cooperação de médicos, pacientes e advogados que defendem a regulação e o acesso gratuito aos remédios produzidos com base na maconha. Fora isso, o apoio às pesquisas científicas e às associações que lutam por esta causa também entraram no centro deste debate, que pode decidir pelo alívio físico, mental e financeiro de inúmeras pessoas por todo o Estado.

Imagem de uma folha de maconha

Sobre a importância das associações para o tratamento com a cannabis, tratamos mais abaixo.

Para a psiquiatra Lisiane Cysne, a proibição da cannabis no Brasil resultou em um atraso nas pesquisas sobre suas substâncias, causando efeitos que duram até hoje. Doutora pela Universitat Autónoma de Barcelona com ênfase em Dependência Química, ela explica que para simplesmente realizar pesquisas é necessário importar matérias-primas de fora do País. “Então é caríssimo fazer esses estudos por aqui”, lamenta, apontando ainda que outra problemática é inserida nesta balança, que é a guerra às drogas.

“Ao discutir a cannabis medicinal não tem como não trazer em sua história a questão da guerra às drogas, que carrega várias problemáticas, inclusive vieses racistas e que refletem na própria economia, já que não se pode plantar ou abrir esse mercado de uma forma mais acessível para as pessoas que estão precisando dele”, expõe. Mas a discussão sobre como a maconha está inserida no meio do debate “Guerra às drogas x Uso medicinal” é tema de uma outra reportagem.

 

 

Regulamentação da cannabis medicinal no Ceará

Os resultados clínicos a partir da administração da cannabis são encontrados em várias partes do mundo, principalmente em países como Estados Unidos, Canadá e Israel, onde existem inúmeras pesquisas sólidas que apontam para evidências dos benefícios da planta. Ao trazer essa discussão para o Brasil, percebemos que passos firmes e significativos têm sido dados nos últimos anos no que diz respeito à regulamentação das medicações com base na maconha.

Em 2014, por exemplo, uma família de Brasília conseguiu autorização da Justiça para importar dos EUA um remédio feito de canabidiol, uma substância retirada da maconha. À época proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), este era o único que conseguia reduzir as crises de Anny Fischer, de 5 anos, portadora da síndrome CDKL5, a qual determina um quadro de epilepsia refratária e que lhe fazia convulsionar por até 80 vezes em um único dia. O caso ganhou manchetes de jornais e deu luz à essa discussão no Brasil.

Quase dez anos depois, a legislação passou por diversas alterações e a lista de produtos derivados da cannabis autorizados pela Anvisa chegou a 26, em 2023. Agora, pacientes conseguem adquirir suas medicações de maneira legal e de duas formas: por meio de importação, com licença prévia da Anvisa; ou comprando diretamente em farmácias. Em ambas as situações, é necessário atestar a real necessidade do uso apresentando uma prescrição médica.

Mesmo com tais avanços, os custos tanto para importar como adquirir esses remédios em drogarias ainda são muito elevados para grande parte das famílias brasileiras. Para se ter ideia, os preços desses produtos podem variar facilmente de R$ 140 a mais de R$ 6 mil, conforme relatos ouvidos pelo O POVO+.

Diante deste cenário, portanto, aumentam as cobranças para que esses produtos entrem na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), que é a lista de medicamentos oferecidos em todos os níveis de atenção e nas linhas de cuidado do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar de não haver uma ferramenta nacional que abrace essa questão, é possível que os estados criem políticas públicas locais e com recursos próprios para isso. A exemplo de São Paulo, que aprovou em janeiro de 2023 uma lei que institui o fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol.

Essa decisão fez brilhar os olhos de muitos cearenses defensores desta política. Prova disso é que membros de associações e grupos que lutam pela defesa do uso da maconha, bem como médicos, pesquisadores, advogados e políticos lotaram uma audiência pública realizada na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), em 19 de junho de 2023. Comandada pelo deputado e presidente da Comissão de Direitos Humanos, Renato Roseno (Psol), a sessão discutiu a regulamentação do uso e da pesquisa sobre a cannabis medicinal no Estado.

Após a reunião, que durou mais de três horas, ficou definido que seria apresentado um projeto de lei para tratar deste assunto. “O projeto busca instituir o uso medicinal da cannabis na renda pública do Ceará e isso é importante porque já existe o uso medicinal regulamentado pela Anvisa, só que ele é de acesso muito difícil”, comentou Roseno à reportagem, mencionando ainda que a proposta já teria pelo menos sete votos de deputados(as) garantidos.

 

Audiência pública sobre regulamentação da cannabis no Ceará contou com presença de deputados do Ceará e vereadores de Fortaleza, além de diversos médicos, advogados e associações que discutem o tema no Estado (Foto: Paulo Rocha / Alece)
Foto: Paulo Rocha / AleceAudiência pública sobre regulamentação da cannabis no Ceará contou com presença de deputados do Ceará e vereadores de Fortaleza, além de diversos médicos, advogados e associações que discutem o tema no Estado

Ainda em junho de 2022, o Conselho Estadual da Saúde (Cesau) aprovou uma recomendação para que o Ceará adotasse o uso da cannabis medicinal pela rede pública de saúde. Atualmente, porém, cearenses que precisam fazer uso de medicamentos à base da maconha, mas não possuem condições financeiras para importar ou comprar em farmácia, têm buscado o apoio jurídico para conseguir acesso por meio do Governo do Estado.

Defensora pública e supervisora do Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa), da Defensoria Pública do Ceará, Yamara Lavor comenta que é realizado um “esforço administrativo” com a Secretaria estadual da Saúde (Sesa) para garantir o fornecimento aos pacientes que apresentam vulnerabilidade social. “Ocorre que no Ceará e em nível nacional as medicações com base na cannabis não estão incorporadas ao SUS, mesmo com a aprovação da Anvisa. Então nós judicializamos essas demandas e temos conseguido decisões importantes para que o medicamento seja adquirido e fornecido a esses pacientes”, assegura Yamara, informando que em 2022 nove pacientes obtiveram sucesso na Justiça.

 

Conforme a Sesa, hoje são atendidos 51 pacientes com o recebimento de canabidiol via Governo do Estado. De perfil majoritariamente de crianças e adolescentes, essas pessoas são diagnosticadas principalmente com fibromialgia, epilepsia, microcefalia ou malformação cerebral. “A Sesa ressalta que o medicamento ainda não é padronizado pelo SUS, sendo a judicialização o atual meio para acesso”, comunica a órgão por meio de nota. A pasta informa ainda que essas demandas custam aos cofres públicos estaduais R$ 726.668

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