Legenda: Deslizamento em Aratuba, no Ceará, deixou três mortos e se tornou símbolo trágico dos efeitos das chuvas no estado
Foto: Fabiane de Paula

Os quase 300 milímetros de chuvas acumulados pelo Ceará em março, superando a média esperada, geram um dilema no peito do cearense: comemorar a fartura d’água ou lamentar os transtornos que ela tem causado?

Com um relevo que vai de serra a depressão, o Estado enfrenta, neste mês, uma situação de calamidade de proporção inédita na história recente, com centenas de famílias que perderam objetos, casas e até vidas pela força da água. O cenário faz até crer na canção: “o sertão vai virar mar”.

Diário do Nordeste conversou com especialistas para entender que fatores potencializam as enchentes, deslizamentos e até os desabamentos registrados no Ceará, e por que o Estado tem sido tão atingido pelos efeitos das chuvas em 2023.

 

 

CHUVAS EXCEPCIONAIS

 

Legenda: Alagamento em Lavras da Mangabeira, no Ceará Foto: Wandenberg Belém

 

Um fator parece óbvio, mas é determinante: as fortes chuvas deste ano são exceção, e as cidades não estavam preparadas para recebê-las. A análise é de Assis Souza Filho, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC).

O especialista, que é cientista-chefe em Recursos Hídricos da Fundação Cearense de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), observa que o Estado intercala “extremos de seca e de cheia” – mas ainda não sabe agir quando “sobra” água.

Precisamos de mecanismos de planejamento para antecipar as possibilidades e agir de forma mais rápida. No Ceará, temos uma ocorrência de precipitações muito variada no tempo. Com a seca, já avançamos muito, temos planos. Precisamos avançar agora na gestão do risco de cheias.

ASSIS SOUZA FILHO
Prof. do Dep. de Engenharia Hidráulica e Ambiental da UFC

Assis explica que a própria construção de reservatórios “como saída para ter água no sertão” vem associada a riscos: como o extravasamento de açudes, por exemplo. Tudo isso, aliado ao crescimento desordenado das populações, desenha um cenário fértil para as tragédias em período chuvoso.

“A geologia cristalina do Ceará e a variabilidade climática forçaram a sociedade a uma necessidade de adaptação. Então, quando há chuvas excepcionais, muito intensas em determinado lugar, geram uma carga maior nas encostas, pondo as pessoas em risco”, destaca.

QUESTÕES SOCIAIS

 

Legenda: Comunidade “ao pé” da serra e próxima à barragem Itapajé, no município de mesmo nome, teve casas alagadas neste mês Foto: Ismael Soares

A ocupação “das bases dos rios” sem um zoneamento adequado, avalia o professor, reflete fatores sociais e econômicos até da capital. “Em Fortaleza mesmo, a margem do Rio Cocó foi totalmente ocupada. Mas temos a barragem do Gavião, que controla o rio e reduz o impacto das cheias.”

Já nos municípios do interior, o baixo preço dos terrenos às margens de rios e açudes e a proximidade dos centros faz com que justamente essas áreas com risco de inundações e deslizamentos sejam as mais procuradas pela população vulnerável.

Esse é um problema de crescimento das cidades. A ocupação dessas regiões acaba tendo grandes efeitos nas cheias, porque o rio quer recuperar sua calha. E há muitas perdas: tudo o que a família acumulou ao longo dos anos é levado pelas cheias.

ASSIS SOUZA FILHO
Prof. do Dep. de Engenharia Hidráulica e Ambiental da UFC

 

As perdas acontecem não apenas em enchentes, mas em outro fenômeno recorrente nas regiões serranas cearenses, neste mês: os deslizamentos.

 

Legenda: Com a força da água, casa desabou em Uruburetama, na região serrana do estado Foto: Ismael Soare

Sandra Baima, doutora em Engenharia Civil e professora do campus de Russas da UFC, explica que deslizamentos em encostas “são um processo natural”. O problema é quando há ocupações irregulares nas proximidades.

“O problema são as ocupações irregulares das populações em áreas sujeitas a deslizamento, um número cada vez maior de pessoas”, observa a professora.

Na região serrana de Itapipoca, por exemplo, a reportagem visitou comunidades assoladas pelos efeitos das chuvas: a maioria alocada em casas construídas de forma improvisada, à beira de rios ou “ao pé” de morros e encostas. Todas sob alto risco e “sem ter para onde ir”.

“O MAIOR PROBLEMA SÃO AS CHEIAS”

 

Legenda: Parque do Povo, em Lavras da Mangabeira, nessa quarta-feira (29) Foto: Wandenberg Belém

 

Os dois principais problemas decorrentes das fortes chuvas no Ceará são as enchentes e os deslizamentos, estes mais localizados, como pontua Flávio Nascimento, professor de Geografia da UFC e pesquisador do Laboratório de Climatologia Geográfica e Recursos Hídricos.

Ele aponta, porém, que a principal preocupação são as inundações, “porque estão nos 4 cantos” do estado – e sequer são “lembradas” pelas pessoas como fenômenos possíveis, “já que o Ceará é muito seco”.

 

As pessoas não têm essa memória climática de que choveu-inundou. Tanto que temos relatos de pessoas que moram há 30 anos nos locais e nunca viram o que estamos vendo agora. Não se observa que as cidades se desenvolvem próximas às planícies dos rios.

FLÁVIO NASCIMENTO
Professor e pesquisador de recursos ambientais da UFC

Flávio sugere o fortalecimento de políticas habitacionais e a fiscalização de construções irregulares, “cujas faltas só são notadas no período chuvoso”, como medidas indispensáveis para lidar com os efeitos dos fenômenos naturais: que devem ser cada vez mais frequentes e intensos.

“Em função das mudanças climáticas, os eventos extremos estão muito mais concentrados e frequentes; chegando ao ponto que vimos no Sertão Central e no Cariri: o maior desastre natural de chuvas já causado no Ceará”, opina.

 

O Ceará tem problemas relacionados a secas, não a inundações. Estas acontecem a cada 30-35 anos. Mas, daqui pra frente, a tendência é de que tenhamos esses quadros se repetindo com mais frequência. E quando vierem secas, serão mais severas.

FLÁVIO NASCIMENTO
Professor e pesquisador de recursos ambientais da UFC

 

Se hoje o sertão virou mar, então, amanhã o mar pode virar sertão.

MONITORAMENTO E PREVENÇÃO

O geógrafo Flávio Nascimento alerta que tanto áreas rurais como urbanas estão suscetíveis às enchentes e outros efeitos das fortes chuvas, mas que o interior cearense padece de maior vulnerabilidade.

Entre as ações necessárias para conter os impactos da quadra chuvosa, ele lista:

  • Restauro de barragens no período de seca;
  • Fortalecimento de estradas, pontes e vias de acesso;
  • Sistema geotécnico de contenção de encostas, “coisa que não temos no Ceará”;
  • Políticas sérias de ordenamento territorial, “definidas com boas políticas habitacionais e planos diretores”.

Um dos órgãos mais importantes de proteção e prevenção de desastres no Estado é a Defesa Civil, ligada ao Corpo de Bombeiros Militar do Ceará. De acordo com o coordenador, o capitão André Sousa, as regiões com mais riscos ficam nas zonas rurais do Sertão Central e do Cariri.

Além de orientar, o gestor reforça que o órgão tem atuado junto aos municípios (alguns com Defesa Civil local) solicitando limpeza de canais e vistorias nas áreas em que as residências estão vulneráveis ao desmoronamento de encostas.

Para Flávio Nascimento, a Defesa é importante “para identificar e mapear as áreas de risco de inundações no sertão e de deslizamento nas serras, e sinalizar pontos mais suscetíveis para que os órgãos possam trabalhar em termos de políticas”.

 

 

 

Diário do Nordeste

 

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