Com todos os cuidados sanitários possíveis, as escolas deveriam ter continuado abertas durante o período de isolamento social imposto pela pandemia de covid-19. É o que defende a professora Maria Inês Fini, uma das referências em gestão educacional na educação básica e no ensino superior. A educadora, considerada “a mãe do Enem”, justifica que o fechamento das escolas causou efeitos devastadores em crianças e adolescentes.
Doutora em Educação, pedagoga, pesquisadora em Psicologia da Educação e especialista em Currículo e Avaliação, Maria Inês Fini participou da implementação da prova que mudou os rumos da educação no País. Também ajudou a criar o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e foi diretora do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) no Brasil.
Entre 2016 e 2018, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Assumiu logo após o impeachment de Dilma Rousseff e não se calou diante das discussões internas ao ser chamada de “golpista”. Era o início do governo Temer. Respondeu com a competência técnica, que dissocia o conhecimento da articulação política.
A professora Maria Inês Fini conversou com O POVO no início de abril, quando esteve em Fortaleza para participar de uma palestra promovida pela Meireles e Freitas para educadores – professores e diretores de escolas. Nesta entrevista, ela analisa a educação nos períodos mais críticos da pandemia, elogia os resultados bem-sucedidos da educação cearense, critica o Governo Federal na conduta da educação na pandemia e lamenta o que chama de “desmonte do Inep”.
O POVO – A senhora está coordenando uma associação nacional que lida com educação híbrida. A pandemia fortaleceu essa discussão. A senhora acredita que a educação híbrida é adaptável a todas as modalidades da educação?
Maria Inês Fini – Nós criamos a Anebhi, Associação Nacional de Educação Básica Híbrida, no contexto da pandemia. Tínhamos que apoiar os professores e gestores para um modelo de educação que se concentrava primeiramente no remoto para depois voltar ao presencial, devido ao isolamento físico da escola com seus estudantes. No momento da pandemia, a educação ganhou essa interpretação, esse enfoque restrito. Ou seja, a ênfase no remoto. Nós nos mobilizamos para ajudar professores, estudantes, famílias de todas as maneiras possíveis para não perdermos o espaço remoto. Agora, depois da pandemia, com tudo o que nós aprendemos, o mundo é híbrido. Híbrido é aquilo que é misturado entre a presença e a distância, entre o presencial e o remoto. E no presencial, com todas as misturas possíveis, a física com a química, a tecnologia na sala de aula, a resolução de problemas, o projeto de pesquisa, enfim, esse conceito de hibridismo, que é tudo junto e misturado, impacta profundamente também a qualidade do ensino presencial. Então, não tem mais sentido termos mais uma associação que cuide apenas da educação híbrida. Porque toda educação será híbrida como a sociedade é híbrida.
OP – Essa visão foi potencializada agora?
Maria Inês – Ela foi potencializada na pandemia com a restrição do conceito privilegiando o ensino remoto e a aprendizagem remota. Tínhamos que manter um vínculo, impedidos que estávamos da relação presencial. Agora não, esse hibridismo, essa mistura de tudo, essa complementação de métodos, de recursos volta para a escola como um todo, que pode e deve usar o recurso remoto como complementação do presencial.
OP – E qual é o futuro da Associação?
Maria Inês – Estamos pensando seriamente em encerrar os trabalhos da Associação, que teve seu sentido na pandemia. Realizamos inúmeros projetos com a Frente Parlamentar Mista da Educação, o Senado, o Conselho Nacional (de Educação), em vários conselhos estaduais, mostrando como é possível começar do remoto e depois voltar para o presencial. E uma das grandes conquistas para a educação híbrida da Anebhi foi mostrar a grande diferença que nós tínhamos dentro da sociedade brasileira. Ou seja, quanto aos alunos da escola pública, os mais frágeis, a desigualdade não se acentuou. Ela mostrou para nós o tamanho que ela tinha. Não tinham acesso à internet, a bens de tecnologia, isso ficou cada vez mais caracterizado. Não foi a pandemia que criou, mas a pandemia mostrou para a sociedade brasileira mais uma vez essa grande defasagem que nós temos na sociedade e que se reflete na escola.
“A gestão nacional foi um desastre. Eu espero que a história possa fazer justiça. As iniciativas estaduais e municipais, e de cada escola em particular, são dignas de louvor. Não foi fácil enfrentar esse novo.”Inês Fini, ao comentar a atuação dos gestores municipais
OP – Havia um movimento com ramificação pelo País pedindo escolas abertas na pandemia de covid-19. Em Fortaleza, não foi diferente. Como a senhora avalia a gestão da Educação nesse período?
Maria Inês – A gestão nacional foi um desastre. Eu espero que a história possa fazer justiça. As iniciativas estaduais e municipais, e de cada escola em particular, são dignas de louvor. Não foi fácil enfrentar esse novo. A escola não estava preparada. O Município e o Estado enfrentaram com muita coragem, com muito valor. E usaram aquilo que eles sabiam fazer, que é o ensino presencial. Tentaram de todas as maneiras possíveis enfrentar o problema. Nós não tivemos nenhum tipo de apoio do governo federal, que era quem tinha que fazer esse tipo de articulação. Como o governo federal falhou, não existiu – pelo contrário, só atrapalhou –, os estados e os municípios cresceram e tiveram de enfrentar, por exemplo, crenças e valores diferentes. Pessoalmente, acredito que as escolas deveriam ter ficado abertas.
OP – Durante o pico de casos de covid?
Maria Inês – Durante a pandemia, sim. Acredito que deveríamos ter tido as escolas abertas.
OP – Mas e do ponto de vista sanitário?
Maria Inês – Com todo o cuidado sanitário, mas as escolas abertas. O efeito de deixar as crianças em casa foi devastador.
OP – A senhora se refere à socialização das crianças?
Maria Inês – Principalmente pela socialização. Hoje temos uma realidade muito desafiadora. Tivemos dois anos com as escolas em casa, alunos fazendo lição de pijama, deitados no sofá. Às vezes, o pai estava ali do lado para oferecer ajuda na lição. Quem sabe o que eles aprenderam? Agora vamos ter que fazer de novo a ambientação, a customização do aluno para voltar. Você tem horário, uniforme, deveres, papéis a respeitar, papéis com os quais interagir, tem que se posicionar, tem que ter lição de casa… e a gente só adquire essa conduta com o hábito. Os professores e os gestores têm que ter muita paciência para que este hábito possa, mais uma vez, ser instituído na vida das nossas crianças e jovens. Não é fácil.
OP – O déficit no aprendizado não foi apenas no ensino regular, mas em outras instâncias também.
Maria Inês – Muitos colegas pesquisadores falam “o que o aluno perdeu”. Não é déficit. Ninguém perdeu nada. Você só perde aquilo que você tem. O que você tem que constatar é que não houve aprendizagem. Embora tenha havido uma série de iniciativas louváveis, alguns alunos não aprenderam, e eles precisam aprender. O esforço é enorme agora para fazer um currículo de transição, um currículo contínuo, como diz o Conselho Nacional de Educação, para que a gente possa criar uma proposta e fazer com que as crianças possam aprender o que não aprenderam.
OP – A realização do Enem também foi um desafio grande. No ano passado, a reaplicação foi confusa para os estudantes. A senhora avalia que foi o momento certo para a reaplicação?
Maria Inês – Mesmo com as iniciativas – inúmeras escolas particulares abriram seus aplicativos para alunos das escolas públicas –, sabemos que muitos alunos não se prepararam adequadamente. Foi lamentável. E é a mesma história – o Ministério da Educação continua andando como se fosse um trator, passando por tudo isso como se não tivesse que fazer uma adequação dos seus propósitos.
OP – Apesar do “fora, Temer” da época, a diferença é que havia um corpo técnico. É isso?
Maria Inês – Sim, a presidente do Inep era técnica, tinha competência técnica para conversar. “Dilma lá fora, no Congresso. Aqui, vamos discutir a estrutura do Saeb”. Quando você tem essa visão da política, você não compromete as evidências. Olha o Censo da Educação Básica, do Ensino Superior, são primorosos, valorizados, aceitos no mundo inteiro. Houve censura no Censo da Educação Básica de 2020. Nem todos os dados podem ser publicados. Por quê? É um retrato do Brasil. Estamos vivendo um momento seríssimo.
OP – A evasão e o abandono escolar são o principal desafio hoje da educação básica?
Maria Inês – Não, isso é um compromisso. O maior desafio é oferecer para o professor a formação de que ele precisa, não a que eu acho. É ele que vai falar para nós. Esse é o maior desafio. Há ONGs e grandes instituições munidas de muita boa intenção, mas você tem que ouvir cada comunidade, a demanda de cada escola. Prover aquilo que falta. É o professor que vai fazer a mudança ou não. Para mim, é o maior desafio da educação brasileira.
“É o aluno que gosta de ler, que está bem alfabetizado, que tem paixão pelo conhecimento, que vê o conhecimento como uma aventura, que se envolve, que controla o seu tempo fora da sala de aula, que faz projetos que têm sentido para a sua vida.”Inês Fini sobre os desafios da educação contemporânea
OP – E como seria essa capacitação? Em que condições?
Maria Inês – Tem que fazer a capacitação no ambiente da sala de aula. Não adianta falar que o MEC está promovendo uma avaliação on-line… Quero saber o que o professor precisa, qual é o projeto da escola, na escola. E o professor tem que receber para isso. A capacitação tem que estar aliada às condições de trabalho.
OP – São muitos os desafios, mas o que temos de bom hoje na educação?
Maria Inês – Bom mesmo foi a família entrar na escola. Isso vai dar trabalho, alguns pais vão querer dar aula e se meter no ensino. Mas, para mim, primeiro: essa entrada dos pais foi maravilhosa. Segundo: essa visão sobre os professores terem de trabalhar coletivamente. Não adianta mais você, professor de matemática do 5º ano, achar que dá conta da história. Você tem que negociar com o professor do 6º. Você não conseguiu ensinar tudo? Ele vai assumir o que você não conseguiu. E, por sua vez, o do 7º ano vai assumir do 6º. Essa perspectiva do coletivo de professores. E outra coisa: o aluno que nós queremos ainda é uma ficção. Não existe esse aluno. Ele faz parte dos livros de psicologia, de pedagogia… Vamos ter que formar esse aluno.
OP – Como é esse aluno que nós queremos?
Maria Inês – É o aluno que gosta de ler, que está bem alfabetizado, que tem paixão pelo conhecimento, que vê o conhecimento como uma aventura, que se envolve, que controla o seu tempo fora da sala de aula, que faz projetos que têm sentido para a sua vida. Nós vamos ter que formar esse aluno. Ele é o cidadão do mundo deste mundo.
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Fonte: O Povo