O picadeiro está vazio há mais de uma semana. Os sorrisos, antes tão fáceis, encontram resistência em sair. Artistas circenses de todo o Ceará são mais uma categoria impactada pelo isolamento social, medida recomendada pelas autoridades sanitárias contra a disseminação do novo coronavírus. Sem espetáculos, público ou bilheteria, pelo menos 46 circos vêm enfrentando dificuldades de manutenção, conforme levantamento da Associação dos Proprietários, Artistas e Escolas de Circo do Ceará (Apaece).
No entanto, o presidente Reginaldo Aparecido salienta que o número pode ser maior, já que a entidade possui cerca de 70 circos cadastrados. “Esses 46 foram os que a gente conseguiu ter contato. Outros estão no Interior e podem estar com problemas de conexão, ou são daqui, mas estão em outros Estados”, explica. A Apaece aderiu ao decreto do Governo do Estado e orientou os associados, no dia 18 de março, à suspensão dos espetáculos por tempo indeterminado.
Ainda não há estimativa de quantos artistas estão sendo impactados, mas Reginaldo afirma que a maioria dos circos tem entre 10 e 20 colaboradores envolvidos. Ou seja, em conta simples, o número varia de 500 a quase 1.000 pessoas. O presidente solicitou que cada unidade envie uma lista com a quantidade de crianças e idosos vivendo nas instalações.
O Circo América, por exemplo, está parado no bairro Conjunto Ceará, na periferia de Fortaleza. Vinte pessoas – 16 adultos e quatro crianças – já encontram dificuldades com a falta de renda. “Tá começando a complicar porque nossa reserva tá acabando, mas a população tá tentando ajudar. Já recebemos cesta básica e o dono de uma padaria diz que vai mandar 30 pães pro café da manhã”, conta Reginaldo, também proprietário do espaço.
Sem aplausos
A trupe de Edson Brandão, mais conhecido como Palhaço Consultinha, está há 10 dias sem receber aplausos no bairro Pedregal, em Aracati, no Litoral Leste do Estado. As 19 pessoas, incluindo oito crianças e um idoso – já vacinado contra a gripe H1N1 -, sobrevivem das doações da comunidade do entorno, já que ninguém da administração municipal procurou o circo, segundo Consultinha. “Não posso nem pegar na mão de quem ajudou pra agradecer”, revela o palhaço.
“Temos uma preocupação muito grande principalmente porque temos crianças e tudo isso mexe com nosso cotidiano. Claro que num dia normal a gente é mais alegre, mas a gente tenta não deixar se abater; busca sorrir pro tempo passar mais rápido”, conta o ele, com os olhos tristes voltados para as mais de 250 cadeiras vazias na plateia. Em dia de espetáculo, o ingresso mais caro custa R$ 5.
Para a socióloga, produtora cultural e representante da linguagem Circo no Conselho Estadual de Política Cultural do Ceará (CEPC), Andréa Vasconcelos, é essencial que os poderes públicos municipais que tenham circos em seus territórios entrem em contato com os donos dos mesmos e “prezem pela permanência deles até que esse momento passe, ajudando principalmente com o essencial, que são água e alimentação”. A ação visa diminuir o deslocamento de pessoas nesses tempos de isolamento social e também garantir o mínimo de estrutura para que esses grupos possam sobreviver pelo período.
Pequenos
Em Ipu, na Serra da Ibiapaba – a 295 km de Fortaleza -, 28 integrantes do Circo Fantástico da família Vilar, de acordo com a proprietária Maria Aparecida Vilar, a Cida, sofrem com a restrição. Na lista, ela inclui filhos, noras, netos e bisnetos. “O circo é arte, é cultura, mas é esquecido”, queixa-se. Com o ganha-pão fechado, a família vêm recebendo doações de mercantis da própria comunidade, incluindo alimentos como frango, leite e iogurte, além de fraldas para as crianças. “Não tenho nem palavras pra agradecer”, emociona-se Cida.
Andréa Vasconcelos pontua que a maioria dos circos cearenses é de pequeno e médio porte, com média de capacidade para receber entre 400 e 600 pessoas sob as lonas. “A estrutura de moradia é precária e muitos passam por dificuldades financeiras. Alguns cobram R$ 1 de entrada”, explica ela, salientando a interiorização da linguagem porque, na Capital, faltam políticas públicas de incentivo e terrenos aptos à instalação dos equipamentos. Por outro lado, sobra violência em alguns territórios.
Ainda assim, para Reginaldo Aparecido, da Apaece, é preciso valorizar a cultura circense pela facilidade de penetração em comunidades desassistidas de ações e atividades no setor artístico. “O circo vai nos lugares mais longínquos e chega a pessoas que não têm acesso a teatro, a cinema. Ele tem o poder de entrar numa favela e fazer a alegria da comunidade. O circo não é um evento, é uma linguagem”, defende Reginaldo.
A Secretaria Estadual da Cultura (Secult-CE) informou, em nota, que o circo é uma das linguagens contempladas pelo Edital “Cultura DendiCasa”, que foi lançado nesta sexta (27), com investimento de R$ 1 milhão para artistas cearenses. Ao todo, serão selecionados até 400 projetos com o valor fixo de R$ 2500.O objetivo é movimentar a economia artística, criativa e cultural, no contexto do enfrentamento ao coronavírus. Outras medidas da Secult deverão ser anunciadas em breve.
Nacional
O movimento “O Circo Pede Socorro” têm recebido apoio de diversos artistas, como o fortalezense Everson Silva, o Tirullipa. O comediante utilizou as redes sociais para fazer um apelo. “Já ajudei muitas famílias, mas se tiver um circo perto de você, ajude também. Leve mantimentos, leve alimentos. Tem famílias que estão passando fome. O circo não tá dando bilheteria, não tá dando gente. As famílias circenses que dependem do dia a dia de shows estão passando por necessidades”, lamenta.
A situação não é exclusiva do Ceará. Existem cerca de 2.500 circos no Brasil, segundo a Cooperativa Federal do Circo. Por enquanto, a entidade está arrecadando donativos como forma de assistência social. “Os valores arrecadados e as doações de alimentos serão direcionadas à Cooperativa e, através dos seus voluntários, serão distribuídas de forma justa às famílias mais necessitadas”, informa.
Nordeste Notícia
Fonte: O Povo