Quem chega ao Sítio Cacimba do Mel, em Genezaré – um dos distritos de Assaré, interior do Ceará – encontra um homem cuidando da terra e dos bichos, revolvendo o solo desde o amanhecer. José Pinheiro de Morais acorda cedo para vestir-se de agricultor e pecuarista. Ofício tão laborioso quanto o que ele presta anualmente no período da Quaresma.
É quando oficializa o posto de Mestre Deca Pinheiro – titulação concedida a ele pelo Governo do Estado do Ceará em 2015. Assume a vocação de Penitente. Faz 74 anos que essa atividade percorre os dias do devoto, cuja principal referência é o pai, cumpridor da mesma missão. “É uma vida sofrida, essa. Só se é penitente se for de coração”, partilha o Mestre.
Não é exagero. Sobretudo nos 40 dias que antecedem a Páscoa, a jornada do homem é rezar terço, tirar esmola, fazer jejum. Um rigor cujo ponto alto é relembrar o sofrimento de Cristo ao viver, literalmente na pele, dor semelhante ao do Deus homem. Mestre Deca usa tranças de couro com cachos de lâmina para flagelar as costas até escorrer sangue.
A Sexta-feira da Paixão é o instante em que esse suplício se torna realidade. Na tradição católica, foi neste dia que o filho divino foi açoitado e humilhado por membros do Império Romano. Guardas colocaram uma coroa de espinhos nele e o obrigaram a carregar uma cruz. Pouco depois, Jesus foi morto e crucificado.
“Ser Penitente é algo que vem desde esse tempo”, contextualiza o Mestre, um dos perfilados na obra “Livro dos Mestres – O legado dos mestres: Cultura e tradição popular no Ceará”, organizado por Dora Freitas e Silvia Furtado, lançado em 2017.
“Jesus formou 12 apóstolos e começou a andar com eles, fazendo orações e milagres. Depois da morte e ressurreição, a Irmandade – esse grupo que foi formado – quase terminou, mas ficaram os 12 penitentes. Tô cumprindo esse caminho trilhado por cada um”.
“A SINA QUE DEUS ME DEU”
Aos 86 anos, Mestre Deca não se exime de vivenciar a missão integralmente. Não teme castigar as costas com as três lâminas afiadas. Não se limita a passar menos tempo que a duração do terço – uma hora ou mais. É ao longo desse desfiar de contas que o sangue deve transbordar. Não deixa de jejuar, de pedir esmola. É para o bem maior pessoal e coletivo.
“A pessoa que tem fé em Jesus Cristo se corta toda hora, todo dia. Não é perigo. Isso se faz à noite; quando é no outro dia, tá melhorzim, sarado”, confidencia. “Na Semana Santa, são três dias de jejum – quarta, quinta e sexta. Na sexta, é que se faz esse flagelo. Foi o dia que Jesus foi crucificado. Temos que fazer o que fizeram com ele. No Sábado de Aleluia e no Domingo de Páscoa, a gente canta e reza, somente.”
O gesto é fortalecido no trajeto pascal, mas não acontece apenas nesse período. Toda vez que paga promessa ou tira novo terço, Mestre Deca está pronto para repetir tudo. Durante muito tempo, ele esteve acompanhado de outros oito penitentes, fervorosos no agir. Contudo, em determinado instante da caminhada, eles não estavam seguindo os ritos. A saída foi iminente.
“Graças a Deus, tô feliz da minha vida porque nunca chegou a hora de dizer: ‘Hoje não estou pensando na Irmandade’. Não. Todo tempo eu tô na minha casa recebendo pedidos de oração, toda noite. E tenho que cumprir, é a sina que Deus me deu”. Ao trazer detalhes dessa rotina à superfície, o Mestre lembra novamente de como tudo começou, ainda criança.
O pai, já doente, chegou a olhar para os oito filhos e explicar que a devoção vinha desde o bisavô dele. Era preciso continuar, então. Calado, o pequeno Deca pareceu apenas ouvir, mas, no íntimo, guardou o chamado, a mensagem: haveria de esticar o movimento. “É preciso ter coragem de seguir na missão”. O Mestre tenta cultivar isso até hoje.
ANDAR COM FÉ
Agora a tradição está em pauta novamente. Sem os outrora companheiros penitentes e com a família de Mestre Deca deixando somente para ele o encargo, como permanecer? A saída, feito na canção de Gil, será sempre andar com fé. E disso o homem está cheio. Elege dois baluartes principais de inspiração: São Francisco de Assis e Padre Cícero.
O primeiro, segundo ele, é um dos maiores penitentes da História; o segundo, além de ter fundado a Irmandade Penitente de Juazeiro do Norte, foi quem acolheu a promessa do devoto: Mestre Deca nunca mais fumaria a partir daquele “sim” à nova vida. E já se vão mais de 30 anos. “Por meio da penitência, eu sigo no caminho de Jesus”.
É Quinta-feira Santa, pouco depois do almoço, quando ele atende nossa ligação para prosear sobre tudo isso. Está à espreita, aguardando o celular do filho, Antônio, tocar. Ao término da conversa, pergunto o que ele fará depois dali: “Dormir”, responde, às gargalhadas. “A gente passa a noite pedindo esmola, tem que se preparar”.
No Sítio Cacimba do Mel, as luzes sempre se acenderão para guiar o caminho.
Diário do Nordeste