Em 3 anos, 95 denúncias de fraudes no uso de cotas para ingresso na Universidade Federal do Ceará (UFC) levaram ao cancelamento de matrículas, de acordo com dados da própria instituição. O número representa 57% de todos os procedimentos já analisados.
Ao todo, de 2020 a 2022, a UFC recebeu 270 denúncias. Destas, 166 foram analisadas pela Comissão de Heteroidentificação, banca responsável por avaliar os casos. Subcomissões de três a cinco pessoas fazem a análise “em ambiente controlado e filmado”, e seus integrantes emitem pareceres individuais.
Quando o relato é julgado procedente, o enquadramento na cota Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) é indeferido, e a matrícula, cancelada. Segundo a UFC, nos 95 casos, os recursos administrativos foram esgotados.
Por outro lado, 71 denúncias foram consideradas improcedentes, e outras 66 tiveram a apuração inviabilizada por causa da perda de vínculo por desistência, abandono ou reingresso por ampla concorrência, dentre outras situações.
38denúncias de fraude ainda aguardam apuração.
Para Sérgio Granja, coordenador da Igualdade Racial de Fortaleza, o aprimoramento das bancas é importante, mas não deve ganhar mais atenção que o fortalecimento da política de cotas em si. A Lei de Cotas foi sancionada em 2012 e deveria ter sido revisada no ano passado, 10 anos depois. Contudo, ainda aguarda novas discussões.
“Além de ser o país com maior população negra fora da África, também foi o que por último no nosso continente fez a Abolição. Isso deixou muitas feridas abertas que sangram até hoje. As cotas são uma reparação histórica com a população negra”, diz Sérgio.
O articulador lamenta que “muita gente vem se aproveitando das cotas para entrar na universidade”, levando ao debate sobre a criação das bancas. Contudo, em sua visão, “a partir do momento em que debatemos só as bancas, perdemos o foco das cotas, que são a nossa defesa”.
COMO A FRAUDE É INVESTIGADA?
Denúncias sobre a utilização indevida das cotas raciais podem ser registradas por meio da Ouvidoria da UFC.
Em seguida, os casos são encaminhados para a Comissão de Heteroidentificação, designada por portaria da Reitoria. “Todos os membros passam por capacitação, que inclui temas sobre a promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo e a aferição de fenótipos”, informa.
A prestação de informações falsas ou a apresentação de documentação inidônea pelo(a) candidato(a) são apurados posteriormente à matrícula, com direito ao contraditório e à ampla defesa.
“Em caso de comprovada má-fé, os componentes curriculares cursados desde o ingresso na UFC poderão ser anulados caso o candidato seja considerado não cotista em procedimento de heteroidentificação”, ressalta a Universidade.
OUTRAS UNIVERSIDADES
Na Universidade Federal do Cariri (UFCA), ainda não houve nenhuma denúncia do tipo encaminhada à Ouvidoria. Sobre o assunto cotas, foram registrados apenas pedidos de informação sobre a política e sobre as atribuições das comissões de heteroidentificação.
Por lá, os candidatos passam pela banca durante o Sisu para confirmação da autodeclaração de cor/raça que assinam durante a entrega da documentação exigida em edital.
Segundo portaria interna da UFCA, a não confirmação da autodeclaração, o não comparecimento pelo candidato ou sua recusa a se submeter integralmente ao processo de heteroidentificação acarretará perda de vaga no processo seletivo correspondente. Se a constatação ocorrer após o ingresso, a matrícula é cancelada.
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) também informou que não há registro de matrículas canceladas por esse tipo de fraude desde outubro de 2019, quando começaram as aferições de heteroidentificação no Instituto, até o processo seletivo em andamento (Sisu 2023.1).
As apurações ocorrem nos 33 campi do IFCE e evitam o deferimento do candidato que, por exemplo, “use de maquiagem com vistas ao escurecimento da cor da pele ou faça procedimentos estéticos recentes a fim de realçar ou sugerir características fenotípicas negroides (tranças no cabelo, cacheamento…)”.
A Comissão Institucional explica que tentativas de fraude amadoras ou até mesmo profissionais não são comuns entre os candidatos/estudantes, e defende alfabetizar a população como um todo sobre sua cor/raça/etnia.
“O reconhecimento racial é um fenômeno recente na educação brasileira. Nos indeferimentos, é muito comum o candidato se autodeclarar pardo não sendo, por exemplo, vítima de racismo devido à sua cor da pele, à textura do cabelo associados à população negra e, portanto, não considerado um sujeito de direito da política de igualdade racial no ensino público brasileiro”, detalha em nota.
A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) também foi questionada, mas não deu retorno até a publicação desta reportagem.
QUANDO SURGIU A REVISÃO?
Até 2019, a ocupação das vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas estava condicionada à entrega de uma autodeclaração, assinada pelo candidato, no ato da primeira matrícula.
Porém, após uma série de denúncias de ocupação indevida entre 2016 e 2018, uma sentença judicial de abril de 2019 determinou que a UFC formulasse e implementasse um sistema complementar à autodeclaração.
Assim, a Instituição adotou o modelo de heteroidentificação, já utilizado nos concursos públicos com reserva de vagas, “diminuindo a condição exclusiva e absoluta da autodeclaração”, conforme nota à sociedade divulgada no ano de início da comissão.
Diário do Nordeste