cidade de Varjota, no sertão do Ceará, não tem livrarias. Por isso, o poeta Mailson Furtado, de 27 anos, vai todo mês à cidade vizinha para comprar livros. Lá, encontrava sua obra mais recente na “última prateleira do último corredor, de um jeito que a gente precisa abaixar a cabeça que nem um anzol para conseguir enxergar o livro”, como ele mesmo diz. Mas, quando Mailson voltar lá, não vai encontrar mais seu livro daquele jeito. Agora, ele está na vitrine.
Esta foi apenas uma das mudanças que aconteceram desde que Mailson voltou de São Paulo com dois prêmios Jabuti. Seu livro À cidade foi eleito não só o melhor de poesia, mas também o livro do ano, honraria máxima da principal premiação literária do país.
“Isso representa um sonho de adolescente de querer um dia mudar o mundo e mostra que é possível viver no lugar onde vivo, que é possível ser jovem e feliz no sertão” diz Mailson à BBC News Brasil.
Esta foi a primeira vez em 60 anos do prêmio Jabuti que o melhor livro foi de um autor independente, como são chamados aqueles que publicam sua obra sem o apoio de uma editora.
Mailson fez tudo praticamente sozinho. Escreveu à mão os versos de À cidade. Fez o desenho que estampa a capa. Editou, revisou e diagramou. E também vendeu no boca a boca os 300 exemplares pagos do próprio bolso.
“Espero ter aberto uma janela para o que se faz de diferente neste mercado, para estes autores que escrevem de forma independente e não conseguem ser publicados por editoras”, diz o poeta cearense.
Seu livro superou os ganhadores das outras onze categorias do Jabuti a partir das quais foi eleito o grande vencedor. Seu nome agora figura lado a lado ao de ganhadores de edições passadas, como Ruben Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Luis Fernando Veríssimo, Ferreira Gullar, Hilda Hilst e Marina Colasanti.
“Foi a grande surpresa deste ano”, diz Luís Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro, que realiza o Jabuti.
“Mailson fez seu livro com sacrifício. Ter concorrido com autores e editoras consagrados prova que seu trabalho é muito bom. E mostra que temos uma produção literária de qualidade ainda desconhecida no país. Precisamos de mais disso.”
‘A obra estava dentro de mim’
À cidade é o terceiro livro de poesia de Mailson e seu quarto ao todo. Os anteriores – Sortimento (2012), Conto a Conto (2013) e Versos Pingados(2014) – também foram produções independentes.
“As pessoas perguntam por que eu escolhi fazer assim, mas eu não escolhi. Foi a única forma. Mandei meu livro para grandes editoras. Acho que uma me respondeu com um não. Outras sequer responderam, e acho isso ainda mais cruel”, diz ele.
“Algumas editoras menores responderam sim, mas, quando você olha a proposta, vê que acaba pagando para ser publicado. Era melhor fazer por minha conta.”
O escritor explica que, antes de começar a escrever seu livro mais recente, estava pesquisando sobre a origem de sua cidade, como sua sociedade foi sendo construída ao longo dos anos, e também sobre a genealogia de sua família. Vasculhou documentos e conversou com parentes em uma pesquisa a princípio de interesse puramente pessoal.
Ao mesmo tempo, leu A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna e, ao viajar pelo interior da Paraíba e de Pernambuco, viu na paisagem os mesmo locais que havia conhecido pelas páginas do livro.
“Fui tomado por um sentimento forte e bonito, como se já conhecesse aquele lugar sem nunca ter ido ali. Voltando pra casa, pensei que seria legal se alguém pudesse ter a mesma sensação ao ler alguma obra de minha região”, diz Mailson.
O poeta conta ter escrito o livro em 20 dias, em uma “experiência visceral”. “Depois daquele primeiro estalo, fiz um rascunho de poema, e ele foi me pedindo mais coisas, mais versos, foi me sugando, e só consegui sossegar quando concluí a ideia”, diz ele.
“Foi uma poesia vomitada. Só me senti bem quando coloquei o livro para fora. Eu estava dentro da obra, e a obra estava dentro de mim.”
O resultado foi o livro lançado em abril do ano passado, uma homenagem ao município de pouco mais de 17 mil habitantes em plena caatinga onde o poeta nasceu e se criou, uma “cidade inventada”, em suas próprias palavras.
Varjota surgiu como um povoado erguido em torno da capela de uma fazenda, em meados dos anos 1920, e existiu pela maior parte do tempo como uma vila e um distrito da vizinha Reriutaba.
Mudou de local – e de nome – quando a construção de uma barragem inundou onde a cidade estava originalmente. Há 33 anos, emancipou-se e voltou a se chamar Varjota.
Ao longo do livro, Mailson costura versos para formar um único “poema de fôlego”, dividido em quatro partes, inspirado pelas ruas, pessoas e rotina da cidade. Pela história, de Varjota e a sua própria.
‘De Varjota para o mundo’
Mailson foi recebido com uma grande festa ao voltar para a cidade no último domingo, sob “um sol desgraçado de quente”.
Muitas pessoas o aguardavam, com celulares a postos para registrar o momento. Mailson retribuía os abraços que recebia como podia, porque as mãos ainda estavam ocupadas segurando seus dois Jabutis.
Saiu dali em carreata pelas ruas da cidade na caçamba de uma picape, ao lado de sua mulher, dos pais e das duas irmãs mais novas.
O carro de som tocava Belchior, um dos cantores favoritos do poeta. “Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”, dizia a canção.
Mailson usava uma camiseta do seu time, o Fortaleza, e carregava uma bandeira da cidade. No capô, uma faixa com uma foto sua no palco do Jabuti e a frase: “De Varjota para o mundo!”.
“É histórico. Carrega todo o peso da tradição não só de Varjota e do Ceará, mas de todo Nordeste”, disse o professor e compositor Erasmo Porta-voz, que seguiu a carreata em sua moto.
“O nordestino, que está em evidência de forma tão negativa, hoje pode se destacar de forma tão positiva. É fundamental isso.”
Quando chegou à cidade, Mailson não conseguiu segurar a emoção. “Esta rua em que vocês estão pisando, esse pedaço de chão aí, foi onde eu cresci. E esse livro vem falar disso, dessa terra em que me criei e que tanto me acolheu”, discursou ele, com os olhos marejados, diante de parentes e amigos.
“Não imaginava chegar à final, muito menos ganhar. É legal demais ver todo mundo aqui para escutar alguém falar de poesia. É inimaginável.”
Mailson também lembrou na ocasião de uma amiga, Rosana, a quem havia prometido que nunca desistiria da arte, e deu vazão a uma frustração.
“Sabe quantas pessoas tinha aqui no lançamento do meu livro? Dez! Por que eu preciso ir pra São Paulo para aparecer? Por quê? Desculpa, pessoal, mas isso rasga a carne da gente. Maltrata demais. Toda vez que isso acontece, tem o potencial da gente pensar em desistir”, disse.
“Valorizem a gente quando a gente está aqui. Meu Deus, que coisa difícil. Não quero ser artista de São Paulo, não. Quero ser artista de Varjota, do Ceará.”
‘É dentista para ser artista’
Mailson ainda não consegue viver de sua poesia. Quando não está escrevendo ou trabalhando com sua mulher, Yane Cordeiro, em sua companhia teatral, ele dá expediente em seu consultório em Varjota e como dentista concursado na Prefeitura da cidade vizinha.
Filho de um agricultor e de uma dona de casa, ele vem de uma família pobre. Sua mãe costuma contar que era uma criança inteligente. Ela o alfabetizou em casa, e Mailson chegou à escola já sabendo ler e escrever. Gostava mais de brincar com livros do que na rua.
Apaixonado por futebol, ele não tinha o sonho de ser jogador. Queria ser comentarista e jornalista esportivo, para ganhar a vida escrevendo – e começou a criar seus primeiros textos quando tinha 14 anos.
Estudou a vida toda em escola pública e, ao prestar vestibular, passou de primeira para três universidades públicas. Entre mecatrônica, enfermagem e odontologia, escolheu a profissão de dentista por acreditar que lhe daria uma melhor condição de vida. “Fui muito pé no chão”, diz.
Nesta época, ele conheceu Yane, com quem hoje tem um filho, Fernando, de 2 anos. O casal estudava em Sobral e teve seu primeiro contato por meio do teatro. Mantiveram-se em contato pela internet até descobrir que eram vizinhos. Aí, o relacionamento engatou. Mailson tornou-se o primeiro namorado de Yane.
“Ele é uma figura bizarra. Era fissurado por matemática, foi estudar saúde, mas é artista. Mas, como a arte não se paga, ele precisa ser dentista para ser artista”, diz ela.
Mailson lançou seu primeiro livro com dinheiro que pegou emprestado com amigos. O que ganhou com as vendas usou para publicar o segundo. Depois, conta Yane, ele se formou, começou a trabalhar, e a situação foi melhorando.
“Ele é muito determinado. Se coloca uma coisa na cabeça, vai atrás. Isso tem um lado ruim, porque ele é um pouco cabeça dura. Às vezes, perde alguma coisa por teimar. Às vezes, conquista. Neste caso, foi bom ser teimoso com a poesia”, diz ela.
“A gente não imaginava nada disso. A indicação já foi uma surpresa e, desde então, tudo veio num crescente. Está demorando para a ficha cair.”
‘Não achava que tinha chances’
Mailson quase não viajou para São Paulo para a cerimônia do Jabuti.
Em parte por causa da situação financeira da família. Eles tinham “gastado o que não podiam” para ir a Paraty para participar da Flip, a maior feira literária do país, sua primeira viagem para fora do Nordeste. E os últimos meses no consultório não haviam sido bons.
Mas também porque ele não acreditava que tinha chances de ganhar. “Não achava que tinha essa potência para competir com os demais concorrentes. Podia ter voltado sem nada, e teria sido um gasto grande por nada”, diz.
Por fim, ele decidiu ir, queria conhecer São Paulo. E estava lá na noite de 8 de novembro para ver pessoalmente seu livro ser anunciado como o melhor de poesia.
“Explodi. Estava com o celular na mão e dois livros no colo. Foi tudo parar no chão. Soltei um palavrão e saí correndo para o palco”, conta Mailson.
“Voltei para o auditório e ainda estava comemorando o primeiro prêmio quando anunciaram o segundo. Fiquei extasiado. Desta vez, fui caminhando devagar para o palco, porque estava anestesiado. E essa sensação só está começando a passar agora.”
Ele diz que já foi procurado por algumas editoras e pessoas interessadas em seu trabalho. Recebeu propostas, mas não teve tempo ainda de parar para avaliar.
Está concentrado na repercussão do Jabuti e no lançamento no próximo mês de seu novo livro, Passeio pelas ruas de mim (e de outros), que ele já havia mandado para a gráfica duas semanas antes de saber que era finalista do Jabuti. Será mais uma vez um trabalho independente.
“É um livro-galeria, que traz experimentos, uma poesia visual com uma forte influência do meu trabalho com teatro e de pesquisas que fiz sobre arte em imagens”, conta ele.
Ele diz que, mesmo agora, não sabe se terá como se sustentar como poeta. “Ainda estou colocando o pé no chão. Sonho com isso e acreditei até agora”, afirma.
“Espero que o meu prêmio ajude a provocar uma reflexão não só no mercado, mas também no leitor, para que ele faça um esforço para enxergar o pessoal independente, e nos próprios autores, inclusive eu mesmo, para que também se permitam a ir atrás do novo.”
Nordeste Notícia
Fonte: Terra