O anúncio de uma gravidez é, em situação ideal, motivo de êxtase para pais e mães. Em muitos casos, porém, o comunicado marca o início do abandono. No Ceará, uma média de 6,4 mil crianças são registradas, todo ano, sem o nome do pai na certidão. Em 2021, foram 8.148, maior número desde 2016.
No ano passado, o Estado contabilizou mais de 7 mil crianças com “pais ausentes”, nomenclatura dada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), responsável pelo levantamento.
Entre os números está o pequeno Joel*, de 1 ano, filho da confeiteira Maria Karla*, 39 – que diante do desinteresse do genitor desde o anúncio da gravidez, desistiu de inseri-lo na certidão de nascimento do menino.
“Quando vi, desde a gestação, que o pai não teria interesse, eu mesma deixei pra lá e registrei sozinha. Pra mim, tem que ter presença. Se não for pra ter, deixa como está”, sentencia Karla, que, além de Joel, tem Catarina*, de 10 anos.
A decisão da confeiteira de não insistir pela presença do pai na certidão do filho, aliás, já veio da “turbulência” que enfrentou com a primogênita. “Ela foi registrada com o nome do pai depois de um processo burocrático e humilhante. E nunca teve a presença dele”, frisa Karla.
A cearense reconhece que “psicologicamente, a função paterna é fundamental, tem um peso grande na criação, diante de uma sociedade ainda muito machista”, mas garante que o vínculo entre ela e a filha foi fortalecido no processo de criação solo.
Cenário semelhante é vivenciado pela autônoma Vânia Lima*, 26, cuja filha Ana Júlia*, de 8 anos, também tem apenas o campo materno preenchido na certidão. “Quando fui atrás dele pra registrar, ele disse que a menina não era dele. Registrei sozinha, pela decepção”, relembra.
A jovem, que à época já tinha um filho pequeno de pai ausente, relata que o período como mão solo “foi muito difícil”, já que precisou começar a trabalhar cedo para sustentar os pequenos. Contar com a rede de apoio familiar, então, foi crucial.
“Tive sempre total apoio da minha família. Minha mãe sempre disse ‘nunca dependa de homem nenhum, mulher pode tudo’. Não fui brigar pra ter o nome dele no registro se ele não ia comparecer. Eu fui registrada com nome do meu pai, mas nunca convivi”, conta.
Há 4 anos, Ana Júlia e o irmão ganharam um padrasto que, segundo Vânia, “é chamado de pai pelos dois”. “Eles sempre conheceram a verdade, o que aconteceu com os pais deles. Nunca achei certo esconder. E vivem bem com isso. Ela mesma diz: ‘minha mãe e meu pai são a senhora’.”
*Todos os nomes de mães e filhos são fictícios, para preservar a identidade das crianças.
Função paterna x figura paterna
Para as mulheres, assumir sozinha a criação de alguém é, embora comum, uma sobrecarga física, financeira e emocional, como destaca a psicóloga Andreya Arruda Amendola, coordenadora do Serviço Psicossocial da Defensoria Pública do Estado.
“A figura paterna é uma coisa, a função é outra. E muitas mães são os dois. Se a figura paterna está ausente, a mãe, avó ou outra pessoa vai se desdobrar para desempenhar essa função, que é, geralmente, de ‘inscrição da lei’, de impor limites”, analisa.
A psicóloga pontua, ainda, que “embora muitas mães consigam executar lindamente ambas as funções”, é possível que haja lacunas ao longo da infância ou da adolescência dos filhos.
Andreya é uma das responsáveis por atender os casos de mulheres ou homens que buscam o reconhecimento da paternidade, para fins de registro de filhos. A maioria das demandas é de solicitações de exame de DNA – em alguns casos, até de pais cujos filhos já são adolescentes, mas querem “tirar a dúvida” sobre o vínculo sanguíneo.
“Quando a solicitação é consensual, é tranquilo. Mas quando uma das partes não aceita fazer o teste, fazemos um trabalho educativo, até chegar ao processo de investigação de paternidade. Ter um registro é muito importante, e os nomes dos pais são a base”, opina Andreya.
Problema social
De acordo com a Arpen, “o registro de nascimento, quando o pai for ausente ou se recusar a realizá-lo, pode ser feito somente em nome da mãe, que, no ato de registro, pode indicar o nome do suposto pai ao cartório, que dará início ao processo de reconhecimento judicial de paternidade”.
Os motivos pelos quais homens se negam a assumir a paternidade de uma criança são múltiplos, e muitas vezes atravessam questões patrimoniais, financeiras, como explica o defensor público Sérgio Luís de Holanda, supervisor das Defensorias de Família do Estado.
“Dúvida sobre a paternidade, não querer assumir obrigações e encargos legais e questões de sucessão hereditária, para não transmissão dos bens, são os motivos mais frequentes”, lista o defensor, indicando que até questões territoriais de violência influenciam no cenário.
Vemos casos em que a mãe rejeita, não quer registrar o filho com o nome do pai por questão de segurança, por morarem em bairros diferentes, de facções diferentes. O próprio pai busca a ação, e a mãe alega que ele não pode entrar no território.
Holanda reforça, porém, que a importância do reconhecimento da paternidade responsável cruza diversas esferas, desde a material, passando pela jurídica até a afetiva.
“Tem todos os aspectos jurídicos, de assistência material, sucessão hereditária, vínculo. E questões relacionadas à dignidade. Quando o pai é omisso, tem-se uma lacuna para a criança. Algumas escolas rejeitam a matrícula, especialmente as de cunho religioso. Há toda uma problemática social”, analisa o defensor público.
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Fonte: O Povo