foto-2Dentro de uma década, muitas pessoas mudam, consolidam novos pensamentos, percebem outros sabores e constituem outros amigos. Mas para alguns, a data 25/11/2006, quase 10 anos, é um suplício de dor e saudade. Isso porque, neste dia, foi o qual o humor amanheceu de luto. Em um acidente de carro, na BR-304, a 50 km de Mossoró (cidade do Rio Grande do Norte), David Cunha Alves de Araújo, nome real do humorista Espanta, faleceu. Certamente quem viveu nos anos 90 e no início dos anos 2000, já viu algum show do Espanta, seja ao vivo na Beira-Mar (Fortaleza), na TV (Escolinha do Professor Raimundo, Show do Tom e outros programas de auditório), rádio, pelos seus CDs de comédia ou pelo famoso show gravado ilegalmente e disponibilizado no YouTube.

David Cunha, conhecido popularmente como Espanta, apelido concebido por um amigo na época em que ele era vendedor ambulante por causa da sua fisionomia excêntrica, começou sua ligação com os palcos aos 15 anos de idade em Natal, no Rio Grande do Norte. Ele fazia dramaturgia com Jesiel Figueiredo, considerado o maior teatrólogo das terras potiguares. Porém, o jovem David Cunha enxergava os palcos apenas como hobbie. Isso fez com que ele abandonasse o teatro anos mais tarde para priorizar sua carreira profissional, até então totalmente distante do humor.

“Se Espanta pegasse uma piada de algum humorista, pronto, podia esquecer de contar aquela piada. Porque ele contava como ninguém, conseguia contar de forma perfeita”Lailtinho Brega, humorista

Aos 17 anos, Espanta ingressou na Diretoria de Ensino da Marinha e serviu por quase três anos. De lá, voltou para Natal para ser recepcionista do hotel Tirol, situado entre os bairros de Alecrim e Lagoa Nova, mas não seguiu no emprego. Ainda tentou ser vigilante da Empresa de Segurança de Natal (EMSERV), mas largou para fazer carreira como vendedor viajante de uma multinacional.

Por muito tempo David Cunha se destacou vendendo os produtos da multinacional no Nordeste e em 1983 foi convidado para fazer parte de uma convenção na cidade do Rio de Janeiro. Por conta da sua “gaiatice”, Walter Mattheos, diretor da Sadia na época, o chamou para subir ao palco e entreter os 800 convidados da empresa contando algumas piadas. O que era para ser uma pequena apresentação virou um show de improviso de uma hora e quarenta e cinco minutos. Nesse período, Espanta estava deixando a companhia na qual trabalhava para se tornar gerente da Sadia na região Nordeste, coisa que nunca aconteceu. Isso porque, depois da apresentação, o diretor da corporação disse que tinha duas notícias para dar a David. Ele não seria mais funcionário da empresa porque a partir dali ele teria que começar sua carreira como ator comediante, patrocinado pela Sadia.

“Ele era tão bom no que fazia, que representava as minhas piadas melhor do que eu e, por causa disso, deixei de contá-las”Adamastor Pitaco, humorista

A pedido de Walter Mattheos, Espanta voltou para Natal e montou o roteiro de um show para se apresentar na casa de espetáculos Teatro Alberto Maranhão (TAM), localizada na praça Augusto Severo, no bairro da Ribeira. Mesmo sendo, até então, um desconhecido para a população local, “Espanta” lotou o teatro por três vezes seguidas, chamando atenção de Jô Soares, que o convidou para o “Onze e meia”, programa do SBT.

Segundo o artista cultural William Collier, Espanta foi o único natalense a lotar o Teatro Alberto Maranhão por três vezes consecutivas. William trabalhou com o ator comediante no projeto Terapia do Riso, que contou com a participação de outros artistas, como Adamastor Pitaco e Rossicléia. Depois do sucesso repentino, Espanta foi convidado para compor a TV Potengi, uma antiga emissora do Rio Grande do Norte afiliada da Bandeirantes. No canal, o humorista criou o programa da Bastinha, que foi líder de audiência no Estado.

Espanta em momento romântico com a esposa Foto: Arquivo Pessoal

A ligação do humorista com o Ceará começou quando o empresário do Falcão (cantor e humorista cearense), foi informado que “um tal de David Cunha” estava fazendo bastante sucesso no Rio Grande do Norte. Sabendo disso, Hélio o convidou para fazer duas apresentações na capital cearense. Após os shows, o humorista foi convidado para voltar mais vezes e realizar eventos. Percebendo que as pessoas já o reconheciam, decidiu se mudar temporariamente para Fortaleza. Fez isso porque estava precisando realizar shows de quinta-feira a domingo. Ou seja, não compensava voltar para Natal apenas para ficar alguns dias lá.

Reconhecido pelos próprios humoristas cearenses, como Lailtinho Brega, Adamastor Pitaco e Escolástika, como maior intérprete de piadas de todos os tempos, Espanta desenvolvia seus próprios textos. Em entrevista dada ao Xeque Mate, programa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Espanta falou que gostava de observar as pessoas em sua volta e por isso que construía piadas tão cotidianas. O engraçado é que os próprios amigos de David Cunha comprovam isso. “Se Espanta pegasse uma piada de algum humorista, pronto, podia esquecer de contar aquela piada porque ele contava como ninguém, conseguia contar de forma perfeita”, disse Lailtinho Brega. “Ele era tão bom no que fazia, que representava as minhas piadas melhor do que eu e, por causa disso, deixei de contá-las”, afirmou Adamastor Pitaco.

O personagem de maior sucesso foi o Pudim de Cana, conhecido no Sul como Mário Manguaça. Isso porque, quando o humorista foi para a Escolinha do Professor Raimundo, Chico Anysio achou que os sulistas marcariam o bêbado pelo nome. No Rio Grande do Norte era diferente, o público se espelhava mais em Bastinha, porque ela representava a parte feminina do Estado potiguar. Uma curiosidade é que sempre que Espanta se apresentava no TAM, sempre havia mais mulheres idosas do que homens, só por causa da personagem. Já a piada que o humorista mais gostava de reproduzir era a do “Caboclo Neném”, onde ele usava efeitos sonoros, expressões faciais, imitações, cenário especial e uma dança.

O ator comediante David Cunha (Espanta). Foto: Arquivo

Pudim de Cana, um dos personagens de David Cunha, fazendo parte do elenco do Show do Tom. Foto: Arquivo

Um órfão do Espanta

Foi na boate Athenas, extinta casa de show que se localizava na rua Oswaldo Cruz, que começou a relação entre David Cunha (Espanta) e Edísio Forte, que foi seu sonoplasta durante quatro anos. O ator humorista era figura cativa nas noites fortalezenses por causa dos shows noturnos que realizava na cidade. Em uma ocasião, Espanta foi até o Clube Athenas a convite do promoter da casa, que também era seu amigo pessoal. Lá, ele se impressionou da forma como o DJ contagiava o público com a sua música. Sendo direto e sem papas na língua como sempre foi, o ator chamou o sonoplasta após a apresentação e perguntou qual o valor que ele queria para deixar os palcos e seguir carreira pelo Brasil. A reunião entre os dois não durou meia hora e já foi fechada. Edísio, que era o DJ oficial da casa, pegou os seus equipamentos e nunca mais retornou ao local.

Edísio Forte foi sonoplasta de Espanta por quatro anos. Foto: Reinaldo Jorge

O ex-sonoplasta do ator, admite, com toda certeza, que até hoje ninguém conseguiu substituir ou ao menos se igualar ao nível do Espanta. Porque, além de um excelente intérprete de piadas, o ator conseguia usar sua inteligência para desenvolver histórias e personagens hilariantes. “Estávamos em São Paulo, em um evento do Bradesco, quando o David entrou com o seu típico cigarro amassado. A platéia então começou a questionar se ele iria fumar ali, no ambiente fechado. Quando Espanta era contrariado sempre tinha que devolver à altura. E foi assim que vi ele criar, em poucos segundos, a famosa piada do cigarro que ele levou durante muitos shows. Segundo Edísio, o cenário dos humoristas no Ceará continua o mesmo, não mudou muita coisa. Ele acredita que muitos sentem a carência de apoio por grandes nomes do humor consolidados no Brasil.

“É como se ele tivesse viajado para um show e eu estou aqui me preparando, aguardando o seu retorno com os meus equipamentos prontos”Edísio Forte, sonoplasta de Espanta

David e Lúcia sempre conseguiam um tempo para eles. Foto: Arquivo Pessoal

Convivendo diretamente com o Espanta em Fortaleza, Edísio pode enxergar situações incomuns sentidas pelo ator e que não eram transmitidas nos palcos. Precisando viajar para trabalhar, David Cunha teve que se distanciar da família, deixando de lado o crescimento dos filhos e o carinho da esposa, Lúcia de Oliveira. O afastamento fazia com que o ator humorista mudasse seu humor e se debruçasse em lágrimas sozinho no apartamento da Praia do Futuro, segundo Edísio. “Por muitas vezes eu tinha que aconselhá-lo e dizer que isso fazia parte da carreira, que a vida dele estava sendo mudada pelo esforço. Em um desses conselhos, um dia ele chegou até mim e disse que eu era o filho fortalezense que ele não teve”.

Emocionado, Edísio fala que depois de muitos anos na estrada, David Cunha decidiu passar seu aniversário com a família em Natal. O sonoplasta ficou em Fortaleza se preparando para um show que eles iam realizar no dia seguinte, em Imperatriz, no Maranhão. Assim como com Lúcia, esposa do humorista, Edísio ligava de hora em hora quando Espanta estava na estrada. Isso porque, David estava com tuberculose na época, impossibilitado de beber e fumar. Meia hora depois da última ligação que o sonoplasta realizou para o humorista, o dono de uma pizzaria de Fortaleza ligou para ele e perguntou se o Espanta tinha sofrido um acidente e morrido. Edísio brincou e disse que ele estava louco, porque tinha acabado de falar com ele, mas ia tirar a história a limpo. Ligou quatro vezes para o celular do David e ninguém atendeu. Desesperado, tentou entrar em contato com Lúcia, esposa do humorista, e também não teve sucesso. Aflito, ligou para o apresentador Paulo Oliveira, que também era um amigo íntimo do Espanta. Paulo disse que apurar a informação e já retornava para o sonoplasta. Depois de 10 minutos a tragédia se concretizou, um deslize e um capotamento tiraram a vida do humorista. “Pronto, depois daquela notícia, o meu chão desmoronou”.

Sentido falta da amizade sincera que tinha com o humorista, Edísio não ouve nenhum CD ou chega perto de algum vídeo do Espanta. O que o deixava feliz no passado, hoje deixa o sonoplasta completamente triste. A morte do humorista é encarada por ele como se fosse uma viagem. “É como se ele tivesse viajado para um show e eu estou aqui me preparando, aguardando o seu retorno com os meus equipamentos prontos”.

“Ele era uma pessoa que fazia uma amizade fácil. Porque entrava em você e te conquistava”Vicente Gonçalves, empresário

Um acolhedor

Vicente Gonçalves, gerente de restaurantes em Fortaleza, foi um dos acolhedores do Espanta na cidade. A amizade entre os dois começou em 2001, depois que David Cunha chegou ao seu estabelecimento para almoçar e nunca mais deixou de frequentar a casa, fazendo praticamente todas as refeições do dia com Vicente. A ligação era tanta que quando o humorista fazia um show, o restaurante tinha que parar para ir prestigiar o seu maior freguês.

A alegria e irreverência do David foi o que impressionou Vicente. “Não teve um show em que eu fui e estivesse vazio, era sempre lotado. A simplicidade, as brincadeiras e as suas atitudes impressionavam todo mundo. Ele era uma pessoa que fazia uma amizade fácil. Porque entrava em você e te conquistava”.

O empresário Vicente Gonçalves foi um dos primeiros amigos de David Cunha em Fortaleza. Foto: Reinaldo Jorge

O restaurante do seu Vicente era como se fosse a mistura dos palcos com o berço familiar. Nele, o humorista comia as mesmas comidas preparadas no Rio Grande do Norte e ainda dava um show de simpatia entre os garçons e transeuntes do local. “Era como se ele estivesse fazendo sempre um show, quando ele saia do palco ainda continuava fazendo todo mundo rir”.

A amizade entre os dois foi construída entre extremos, ou seja, David Cunha era muito midiático e Vicente era e continua tímido. O empresário sempre passava por poucas e boas quando levava sua família e seus funcionários para se divertirem assistindo aos shows do humorista na Beira-Mar, em Fortaleza. Antes de cada apresentação, Vicente fazia questão de se encontrar com Espanta e suplicava para David não usá-lo nas piadas. Mas o conselho entrava no ouvido e saia pelo outro. Assim que subia no palco, David fazia questão de encontrar seu Vicente na plateia e fazer a sua “publicidade”.

Sentindo falta do seu amigo não só no restaurante, mas também diariamente, Vicente conta orgulhoso que possui todos os CDs de piada autografados que o ator comediante lançou. Porém, ele não faz questão de assistir aos DVDs gravados ilegalmente. Isso porque, segundo personagem, a gravação foi disponibilizada a contragosto do ator. Então, acha uma falta de respeito assistir algo que o deixou tão chateado na época.

No dia do acidente, Vicente Gonçalves estava realizando um evento em Maracanaú. Como se fosse hoje, ele lembra que alguém de Natal ligou às 22h e avisou sobre a tragédia. O ocorrido deixou o empresário travado, pois a vontade dele era de largar tudo e ir para Natal, confortar a família do seu grande amigo, mas o compromisso não o deixou se despedir à altura.

Sentindo falta da alegria e atenção do amigo, Vicente lembra que todo santo dia eles se telefonavam e quando não se falavam pelo celular, iam de se encontrar em algum local para colocar o papo em dia e brincar. Emocionado, o empresário diz que a única certeza que ele tem hoje é que vão se encontrar em breve.

O amigo do peito

Um dos maiores amigos que David Cunha teve foi o humorista cearense Lailtinho Brega. Junto com o ator, Espanta rodou os palcos do Brasil apresentando sua piadas no espetáculo “Só o Riso”, desenvolvido pela dupla. Os dois se conheceram na época em que Cunha veio a Fortaleza para abrir os shows do cantor e humorista Falcão. Depois de um tempo trabalhando com Hélio, empresário de Falcão, Cunha saiu da sombra do artista e começou a contar suas piadas em eventos maiores. Com uma bagagem mais completa e obtendo respeito do público cearense, David Cunha começou a se entrosar com atores locais.

Segundo Lailtinho Brega, o humorista era um ser humano com a alma mais bela que ele conheceu. Espanta cativou o personagem cearense e o seu público por conta do seu bom humor, criatividade e irreverência. Vivendo o seu dia a dia da mesma forma como se apresentava nos palcos, sempre tendo uma resposta para tudo. Por ser um dos melhores amigos do natalense, Lailtinho sente muita falta da convivência e dos shows realizados pelo humorista. Para ele, Espanta deixou o cearense órfão das piadas. Isso porque, na visão do artista, atualmente o humor do Ceará é visto como produto turístico, ou seja, quase não existe fortalezenses como plateia nas apresentações.

Lailtinho Brega é humorista e produtor cultural. Foi um dos melhores amigos de David Cunha e se apresentou com o ator pelo Brasil Foto: Thiago Gadelha

Dividindo a carreira de humorista com a de produtor cultural e empresário, Lailtinho ficava abismado com a quantidade de shows que o seu amigo realizava, tendo que fazer cinco ou seis apresentações por dia. Foi o teatro popular que fez Espanta ser o que foi e ser lembrado até hoje.

“Em um mês, ele realizou 45 shows na cidade de Fortaleza. Tinha vezes que ele só não fazia mais eventos em um dia porque não podia”Lailtinho Brega

Lailtinho estava em casa quando um garçom o telefonou. Assim que ele atendeu, o profissional falou que o Espanta tinha sofrido um acidente grave e que talvez não tivesse resistido. De cara, o ator cearense disse que a informação era falsa e desligou. Com a notícia remoendo em seu pensamento, decidiu ligar para o celular do amigo. Após o celular tocar por algumas vezes, quem atendeu foi Kelson de Araújo, filho de David Cunha. O jovem falou que o veículo tinha capotado, que saiu ileso, mas o seu pai ainda estava nas ferragens e da forma como as pessoas o olhavam, o pior tinha acontecido.

Nordeste Notícia
Fonte: Diário do Nordeste
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